originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/03/06/tfg-pedagogia-da-esperanca/
Este é um dos trechos, talvez pela simplicidade, talvez pela força expressiva, mais citados de toda a obra de Paulo Freire. Foi publicado em Pedagogia da esperança, um relato informal e inspirador da trajetória do educador-educando escrito em 1992.
Freire descreve a experiência que teve com trabalhos de extensão agrícola direcionados a camponeses (a mesma experiência — especificamente aquela que teve com camponeses chilenos quando de sua passagem no Instituto de Desenvolvimento e Reforma Agrária daquele país — foi problematizada no livro Extensão ou comunicação):
De volta para casa [de seu trabalho com camponeses no Chile, em que procurava dialogar com os trabalhadores reassaltando a importância de seu conhecimento prévio do mundo para a partir daí conhecer mais] recordava a primeira experiência que tivera muito tempo atrás na Zona da Mata de Pernambuco, tal qual a que acabara de viver.
Depois de alguns momentos de bom debate com um grupo de camponeses o silêncio caiu sobre nós e nos envolveu a todos. […]
— Muito bem — disse eu a eles. — Eu sei. Vocês não sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem?
Aceitando o seu discurso, preparei o terreno para minha intervenção. A vivacidade brilhava em todos. De repente, a curiosidade se acendeu. A resposta não tardou.
— O senhor sabe porque é doutor. Nós, não.
— Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, por que eu sou doutor e vocês não?
— Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo e nós, não.
— E por que fui à escola?
— Porque seu pai pode mandar o senhor à escola. O nosso, não.
— E por que os pais de vocês não puderam mandar vocês à escola?
— Porque eram camponeses como nós.
— E o que é ser camponês?
— É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem direitos, sem esperança de um dia melhor.
— E por que ao camponês falta tudo isso?
— Porque Deus quer.
— E quem é Deus?
— É o pai de nós todos.
— E quem é pai aqui nesta reunião?
Quase todos de mão para cima, disseram que o eram.
Olhando o grupo em silêncio, me fixei num deles e lhe perguntei: — Quantos filhos você tem?
— Três.
— Você seria capaz de sacrificar dois deles, submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa, no Recife? Você seria capaz de amar assim?
— Não!
— Se você — disse eu —, homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é o fazedor de todas as coisas?
Um silêncio diferente, completamente diferente do anterior, um silêncio no qual algo começava a ser partejado. Em seguida:
— Não! Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão!
Possivelmente aqueles camponeses estavam, pela primeira vez, tentando o esforço de superar a relação que chamei na Pedagogia do Oprimido de “aderência” do oprimido ao opressor para, “tomando distância dele”, localizá-lo “fora” de si, como diria Fanon.
in FREIRE, Paulo. [1992] Pedagogia da esperança. 15a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008, pp 49–50.
Nem o mais insensível dos conservadores poderia negar que o que se passou ali é, no mínimo, bonito.
isso é ser didático, um educador na acepção da palavra, é saber DIalogar!!!
é lindo, poético e profundo…
Genial
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