Entre 1989 e 1992 o Cedec (Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Comunitários), ligado à Emurb (Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo), desafiou o conservador mercado da construção civil paulistano e promoveu na cidade um conjunto edificado de alta qualidade arquitetônica e construtiva a custos reduzidos a partir de sistemas de pré-fabricação em argamassa armada, empregando mão-de-obra qualificada em sistema de cooperativa. Mais detalhes sobre a experiência (que só foi possível graças à gestão democrática e popular de Luiza Erundina) seguirão no futuro, ao longo do desenvolvimento do TFG. Por ora: o Cedec foi uma fábrica pública de componentes construtivos idealizado pela arquiteta Mayumi Watanabe de Souza Lima que agregou à sua linha de produção as pesquisas desenvolvidas por Lelé e pelo Grupo de São Carlos durante cerca de duas décadas. Mais informações sobre o Cedec constam nesta dissertação de mestrado.
pré-fabricação vulgar
São vários os motivos para a relativa condição de atraso em que se encontra nossa pré-fabricação de elementos de concreto armado: alto exército de reserva de mão-de-obra para construção (baixos salários geram lucros maiores que qualquer economia de escala mesmo em grandes obras); estágio de desenvolvimento econômico próprio do capitalismo periférico (o tal ornitorrinco); adequabilidade de sistemas de baixo valor agregado à autoconstrução cotidiana (lajes “pré”, blocos cerâmicos, de cimento, balaústres manufaturados, etc); entre outros. Não cabe discuti-los agora, mas não me convence a ideia de que haja qualquer tipo de “preconceito” por parte de projetistas contra tais sistemas — o que “barraria” sua maior penetração no mercado —, pois trata-se de problema de ordem econômica. A pré-fabricação no Brasil só é utilizada em obras que demandem alta velocidade de execução (galpões industriais, hipermercados, shopping centers, etc), nos quais os altos custos dos sistemas são rapidamente compensados pelo uso imediato do edifício (seja fabril ou comercial). A inesperada urgência em construir algumas poucas unidades para o programa Minha Casa Minha Vida a uma velocidade maior que a habitual demonstrou o quão despreparado está o setor: algumas das soluções encontradas de improviso (como a péssima concretagem de paredes inteiras) revela-se patética e ingrata.
Os pré-fabricados disponíveis no mercado estão de tal forma adaptados a tal cenário que é praticamente impossível construir edifícios de múltiplos andares sem a solicitação de peças especiais às fabricantes (chega a ser difícil encontrar conexões pilar-pilar).
Trata-se de uma cultura construtiva do desperdício. A imagem abaixo explicita tal situação: trata-se da estrutura mais antiga do mundo, visto que trilítica e isostática. Os momentos fletores são violentos, assim como a cortante junto ao apoio: na prática, é a viga elementar ensinada a estudantes nas primeiras aulas de resistência dos materiais. Embora saibamos ser possível dotar tal estrutura de hiperestaticidade com uma pequena concretagem in loco, unindo armaduras da viga ao pilar, na prática trata-se de uma estrutura antieconômica intensamente utilizada em galpões industriais e grandes centros de compras. E até mesmo em escolas…
É perturbador: uma conjunção de fatores que leva um sistema construtivo relativamente avançado a adotar estruturas superdimensionadas. Desperdício estimulado pelo desenvolvimento tecnológico.
combate ao desperdício: pré-fabricação com argamassa armada
Vinte anos atrás o Cedec já produzia vigas de menor dimensão em argamassa armada (chegavam a resistências da ordem de 40MPa). A economia no consumo de material era evidente: utilizavam-se telas de aço de bitolas mínimas comparadas às de vigas comuns de concreto armado, além de dispensar o uso de brita. A viga acima (simplificada), composta por dois tramos pré-fabricados e unidos no canteiro com rápida concretagem nos vínculos, era manuseada por dois operários com alguma facilidade, chegando mesmo a dispensar, nas piores condições, o uso de gruas. Trata-se de desenho adaptado das experiências de Lelé.
Curiosamente, o diagrama de momentos mais arrojado e econômico é resultado apenas de uma operação pouco mais apurada no desenho da estrutura. O famoso balanço econômico é conhecido de arquitetos há décadas (e foi tão utilizado pela arquitetura paulista que chegou mesmo a perder, em certos casos, seu sentido original, estilizando-se): gera redução dos momentos centrais com a criação de momentos negativos nos tramos em balanço, criando ainda pontos de momentos nulos em setores estratégicos das vigas.
Foi adotado naquela viga de forma inteligente, simples e sensível. Cabe perguntar: como um raciocínio tão simples passou batido pelos grandes produtores de pré-fabricados?
Apenas iniciativas estatais de industrialização da arquitetura conseguiram no Brasil romper com a estética do desperdício e do exagero que marca nosso mercado de construção civil (devorador de commodities e de mão-de-obra barata). Não por acaso, o Cedec foi fechado por Paulo Maluf logo que assumiu a prefeitura.
Então Gabriel,
gostei de alguns pontos levantados sobre o problema, mas gostaria de comentar sobre as paredes de concreto….
Conheço um pouco mais da técnica, na verdade trabalho em um canteiro de obras que usa essa técnica, mas de uma maneira um pouco diferente. Eles fazem paredes de concreto com formas de metal, que são reutilisadas muitas vezes em varios canteiros de obras. Essa técnica é usada principalmente porque reduz muito a mão de obra. Aqui a qualidade sai boa, mas eu acho isso porque todas as instalação são feitas externamente.
Então eu deixo uma questão, será que a qualidade não tem relação com a quantidade de obstáculos que sofre o concreto no momento da betonagem?
Na maioria das casas por aqui (França) a instalação é externa, isso pode ser uma opção para reduzir custos das casas populares?
Sobre o acabamento, eu acho que para ficar melhor é necessario passar uma camada de gesso, ou então usar concreto arquitetural.
Só para saber qual é a tese que vc defende?
Espero que tenha servido para algo…
Beijos
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legal, gostaria de conhecer mais sobre experiências de uso deste tipo de formas de uso múltiplo
Mas a crítica vai em outro sentido: trata-se de uma solução improvisada pelas grandes construtoras para o Minha Casa Minha Vida, adotando esquemas construtivos mal adaptados ao clima e à cultura local (sobretudo ao calor tropical). Na Europa há regras construtivas rígidas com relação à proteção termoacústica de elementos de concreto (em Portugal as peças de concreto são chamadas “pontes térmicas” e não podem nunca estar ao mesmo tempo aparentes dentro e fora), além da cultura própria de dotar as edificações de calefação. Enfim, esta é apenas uma das faces da questão.
Além da própria crítica ao concreto: alto consumo de commodities para uma função (vedação, ao invés de ser apenas estrutura) que poderia ser melhor resolvida de outra forma. Sem dúvida é melhor que empilhar tijolos a dezenas de metros de alturas, mas me parece repetir os erros da pré-fabricação pesada de cinquenta anos atrás (paineis-parede). Aliás, me parece ainda menos inteligente que os próprios paineis-parede, que já eram péssimos.
Outro ponto: habitação social não é propriamente um problema de custo (só de olhar para os BDIs das construtoras já se vê que há algo de errado), mas principalmente fundiário. Não estou de modo algum dizendo que o problema tecnológico seja secundário, mas ele sozinho não indica a superação do déficit. O próprio Minha Casa Minha Vida (programa conhecidamente voltado às construtoras, não à habitação) foi responsável por elevar o preço da terra e dificultar casas menos distantes (além de ter aumentado o preço do cimento, por exemplo…). Além disso, já há experiências interessantes no país de projetos de alta qualidade e alta dignidade a custos econômicos (como indica a trajetória do Lelé).
valeu pelo comentário!
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