originalmente publicado em 08 de abril de 2009 na página http://stoa.usp.br/gaf/weblog/47186.html
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Como se sabe, no IV Congresso Internacional da Arquitetura Moderna, ocorrido em 1933 em um cruzeiro no Mediterrâneo, formulou-se o documento-manifesto que mais tarde serviria de base para a famosa Carta de Atenas de Le Corbusier.
Da mesma forma, sabe-se que o congresso foi organizado às pressas no navio pois o evento original que estava programado para ocorrer em Moscou havia sido cancelado às vésperas de sua realização.
Seguem duas observações sobre o assunto. A primeira, mais conhecida, de Anatole Kopp, consta do clássico Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. A segunda foi retirada de um livrinho chamado The image of the architect (já citado aqui).
Durante os anos vinte as experiências de vanguarda (das quais a maior parte ficará no estágio de projetos) sucedem-se na União Soviética, suscitando o interesse – às vezes o entusiasmo – dos profissionais ocidentais. (…)
Mas apesar das dificuldades de comunicação entre a URSS e o Ocidente, no início dos anos trinta impõe-se uma imagem da arquitetura e do urbanismo soviético na Europa. Segundo essa imagem, na URSS a arquitetura "moderna" tem o apoio das autoridades, ela é de certo modo, a arquitetura oficial. (…) Não surpreende então que o Congresso de 1932 sobre o tema "cidade funcional" seja previsto para Moscou contando, pela primeira vez nesses congressos, com a participação efetiva de arquitetos e urbanistas soviéticos. (…)
No momento em que ocorre a reunião [preparatória do IV CIAM] de Barcelona, um número importante de arquitetos estrangeiros trabalha na União Soviética. A grande maioria deles é de alemães e foram formados nos grandes programas de arquitetura social da República de Weimar dos anos 26 a 31. Eles intervêm por escrito da URSS para criticar certos aspectos das diretrizes de trabalho elaboradas em Berlim e em particular da pouca importância dada aos fenômenos sociais tais como (…) segregação social e política (…), problemas de transporte e abastecimento, etc. (…) [Suas críticas] permitiriam, se adotadas, dar ao congresso uma orientação mais de "esquerda" do que a resultante da reunião [preliminar] de Berlim, sem contudo apelar para noções diretamente revolucionárias não susceptíveis de serem aprovadas pela maioria dos delegados. Mas no momento mesmo em que essas propostas são discutidas, chega a Barcelona uma notícia que muda radicalmente a imagem que a URSS tinha aos olhos da maioria dos membros dos CIAM. De "progressista", a imagem passará a "reacionária" e a pátria da arquitetura "moderna" aparecerá repentinamenta como sendo, na realidade, a do passadismo mais desgastado.
Kopp se refere ao resultado do concurso do Palácio dos Sovietes. Como se sabe, tal projeto prenunciaria o período da arquitetura stalinista (de contornos neoclassicistas, monumentalistas e passadistas). Continua mais adiante:
(…) Diante dessa decisão [resultado do concurso] totalmente inesperada pelo Ocidente, a assembléia de Barcelona não podia deixar de reagir (…). Reação firme, sem dúvida, mas também ingênua, pois a reunião aprova o princípio de uma carta pedindo a anulação da decisão do júri, acreditando num erro, num mau julgamento, sem compreender (mas como os delegados de Barcelona poderiam compreender?) que não se tratava da decisão de um júri qualquer de concurso, mas de uma mudança política e cultural sem precedentes na história. (…)
A significação desse documento para a história da arquitetura e do urbanismo "moderno" é, evidentemente, decisiva. Mesmo se a decisão de não realizar o 4º Congresso em Moscou não foi tomada em Barcelona; (…) mesmo se foi o acaso ajudado pela sorte que permitiu finalmente que o congresso acontecesse, ainda assim com um ano de atraso, a bordo do Patris II e em Atenas, não é menos verdade que foi em Barcelona, em 1932, que ocorreu a ruptura entre a arquitetura "moderna" etiquetada como "de esquerda" pelos seus adversários, e o país onde pela primeira vez na história do mundo "a esquerda" tinha tomado o poder para reconstruir por inteiro as relações sociais e o ambiente humano.
fonte: KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo: Studio Nobel, pp 147-158
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Já em The image of the Architect (que está longe de ser um livro de história: parece mais um apanhado – por vezes não muito aprofundado – de imagens e discursos sobre a profissão do arquiteto), Andrew Saint atenta para o seguinte:
In 1932 Gropius visited Russia and was bitterly disillusioned; hecame back ‘greying and shaken by what he had seen and experienced’. On his return, at the most delicate possible point in the evolution of Soviet architectural institutions, the influential Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), set up four years previously to represent the whole western Modern Movement, took a drastic step. Indignant at the result of the Palace of Soviets competition they at the last minute cancelled their forthcoming third conference in Moscow, opting instead for the comforts of a luxury Mediterranean steamer the following year. Twenty-six foreign architects working in Moscow, most of them doubtless members of the Meyer and May groups, protested in vain. The significance of this act was that it officially dissociated the Modern Movement in the West from architectural developments in Russia, crudely interpreting and condemning them in terms of style when as yet no ukase on matters of architectural style had been issued. Despite the recrudescence of neoclassicism there was plenty of stylistic variety in official architecture; modernism was tolerated until 1936, when rigidity became the rule in virtually all fields of Soviet life. In 1932 Bruno Taut was still hopeful enough to move his practice to Russia; and as late as 1934 so prominent a western modernist as André Lurçat could be enticed into a three-year stay under the second Five Year Plan and build quite succesfully. Even in January 1937 Frank Lloyd Wright, star guest at the first All-Union Congress of Soviet Architects, found much greater variety of view than he had expected. (In Wright’s case, however, large doses of flattery and some skilful ’squiring around’ by Alabjan plainly impaired his perceptions). [o grifo meu]
Saint continua o relato, indicando os caminhos tomados pelos arquitetos emigrantes que, após um período fértil de trabalho na URSS, passaram a sofrer repressão de Stálin e tiveram de abandonar o país. Bruno Taut foi para o Japão e depois para a Turquia, por exemplo. Ernst May trabalhou brevemente na África. Hannes Meyer passou uma década no México.
No último parágrafo do capítulo (sem querer passar uma visão maniqueísta da história 😉 ele faz uma observação interessante:
The causes given for Meyer’s comparative failure are shrewd. The accusation is shoddy and prompted by the challenge that the consistent example and philosophy of Meyer and his colleagues continue to pose to the orthodox western architect. Gropius himself was too vulnerable and uncertain to admit this, but such a consistently aesthetic architect as Phillip Johnson has seen it: ‘Hannes Meyer was a Communist, and was a dammned good architect, and the more I see of Hannes Meyer the greater man I think he was. But I don’t like what he said…’ Naturally: for in the breadth of radicalism of such an architect, reaching far beyond questions of style to the scope and nature of the profession, lives on a reproach and a threat from which the modern practitioner can never entirely avert himself, however skilful and sprightly his stylistic twists and turns. [o grifo é meu]
fonte: SAINT, Andrew. The image of the Architect. Londres e New Haven: Yale University Press, 1983. pp 132-137