repostagem: cidade e democracia (autonomia x heteronomia)

Originalmente publicado em http://stoa.usp.br/gaf/weblog/46055.html no dia 26 de março de 2009.

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Ontem (quarta-feira, 25.03.2009) ocorreu a sessão extraordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa da Câmara Municipal de São Paulo, à qual assisti. Esteve em pauta a discussão a respeito da legalidade do projeto de lei – de autoria do Executivo – de revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (Lei Municipal nº 13.430-02). Não pretendo aqui falar sobre a revisão propriamente dita, mas sobre alguns aspectos da reunião que considerei especialmente relevantes e preocupantes, visto que denunciam o desprezo e as relações de clientelismo que membros das instâncias da política institucionalizada nutrem com o povo e a sociedade civil organizada. Cabe, no entanto, uma contextualização do problema, que será dada a seguir.

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O atual Plano Diretor da cidade foi desenvolvido pela Gestão Suplicy (2001-2005) entre 2000 e 2002 e aprovado neste último ano. Entre 2002 e 2004 também foram desenvolvidos os chamados Planos Regionais, que pormenorizam as ações descritas nos plano geral da cidade para cada uma das Subprefeituras. Estes planos (Lei nº 13.885-04) foram aprovados em 2004 e se confundem com a Legislação de Uso e Ocupação do Solo (vulgarmente chamada "Zoneamento"). Desta forma, entende-se que o planejamento "básico" da cidade se dá pela somatória Plano de 2002 e Plano de 2004. Para uma história mas ampla do Planejamento e do Urbanismo em São Paulo – cidade em que um novo plano foi aprovado ou discutido pelo menos uma vez a cada década desde os anos 60 -, no entanto, recomenda-se a leitura de Feldman (2005) e Villaça (1999). No blogue urbanidades.arq.br há também um texto básico interessante.

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Embora o tema "planejamento participativo" seja de alguma forma polêmico entre as esquerdas – embora celebrado historicamente pelos mais importantes nomes do planejamento urbano de esquerda no país, todos sabem que processos que são "participativos" em fachada podem se transformar em instrumentos ideológicos, por parte das elites, de legitimação de determinadas ações sobre a cidade, anulando de forma apolítica conflitos urbanos – as instâncias de promoção da democracia radical nas cidades sugeridas pelo Estatuto das Cidades são um avanço e deveriam ser celebradas. Desta forma, já que o próprio Plano Diretor exige que todos os processos de revisão, complementação e avaliação de seus princípios, objetivos, ações e normas sejam efetuados por meio da democracia participativa, então não faria sentido criticá-la em nome de desavenças interpretativas. Há, porém, que se concordar com o fato de que a instauração de um processo "participativo" de discussão da cidade não é tarefa fácil e o resultado pode se transformar em uma falácia. O mesmo Villaça fez uma crítica fundamental sobre o desenvolvimento do PDE em São Paulo em seu texto As ilusões do Plano Diretor (disponível aqui em pdf).

O Plano estabelece o seguinte:

Art. 5º – Este Plano Diretor Estratégico parte da realidade do Município e tem como prazos:

I – 2006 para o desenvolvimento das ações estratégicas previstas, proposição de ações para o próximo período e inclusão de novas áreas passíveis de aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade;

II – 2012 para o cumprimento das diretrizes propostas.

e mais adiante

Seção VII – Da Revisão e Modificação do Plano Diretor Estratégico Municipal

Art. 293 – O Executivo deverá encaminhar à Câmara Municipal o projeto de revisão do Plano Diretor Estratégico em 2006, adequando as ações estratégicas nele previstas e acrescentando áreas passiveis de aplicação dos instrumentos previstos na Lei Federal nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade.

Tendo tudo isto em mente, o mínimo que se esperaria de uma revisão do PDE seria o caráter democrático e popular de sua elaboração, similar ao ocorrido entre 2002 e 2004, com oficinas e discussões constantes nos distritos e subprefeituras. Apenas após um longo processo de discussão local (vários meses) é que se deveria promover, em cada subprefeitura, uma audiência plenária – apenas após esta audiência o plano deveria ser formatado. Ocorre que a proposta de revisão encaminhada pelo Executivo, desprezando o povo e ignorando a necessidade de discussão democrática do plano, ocorreu sobre audiências burocráticas e apolíticas. A revisão do plano foi desenvolvida em gabinete, não foi divulgada e apenas após sua finalização ela foi publicada no sítio da prefeitura, alguns dias antes das plenárias regionais. Tais plenárias não se caracterizaram pelo conflito de ideias ou pela discussão da cidade, mas de uma apresentação burocrática do novo plano. Em suma: desprezou-se o caráter democrático do plano. Houve casos em que a população de algumas subprefeituras presentes às plenárias votou contra a revisão proposta – mesmo assim nada nela foi alterado e os gabinetes continuaram a trabalhar.

Além disso, o plano que ora é enviado à Câmara é substancialmente diferente daquele que foi alvo de apresentação nas subprefeituras (contrariando as determinações do próprio PDE). Trata-se de um novo plano, bastante diverso do anterior, no qual todos os avanços sociais foram ignorados e formatado para agradar apenas ao mercado imobiliário (principal financiador das campanhas da maioria dos vereadores eleitos, aliás, sejam eles da situação ou da oposição).

Aliás, o mercado imobiliário, por meio de uma entidade-fachada (a Associação Imobiliária Brasileira), financiou a campanha de 27 vereadores da cidade (número suficiente para aprovar a maioria dos projetos).

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Devido às irregularidades e à ilegalidade das ações da Gestão Serra-Kassab, há uma ação pública promovida pelo Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo e por 140 entidades correndo na Justiça que pede a interrupção da revisão e a implantação dos procedimentos democráticos apropriados. A ação, no entanto, acontece independente dos trabalhos no legislativo, e tudo indica que a revisão do plano será realizada antes mesmo dela ser julgada.

Isto, no entanto, não é recente: desde 2006 diversas entidades articulam-se contra a forma antidemocrática com que Serra e Kassab têm dirigido o processo de revisão do Plano. O destaque dado a isto pela mídia de massas, no entanto, é nulo.

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Voltemos à reunião de ontem na Câmara Municipal. A Comissão possui nove membros: sete são da base governista (ou seja, capachos dos demos e tucanos capitaneados pelo Kassab) e dois da oposição (Ítalo Cardoso e João Antônio, ambos do Partido dos Trabalhadores). Com esta composição, é evidente a qualquer um que a legalidade da proposta de revisão seria aprovada por rolo compressor, mesmo que a ilegalidade desta revisão seja também evidente a todos – ela inclusive é considerada inconstitucional pela citada ação da Defensoria Pública. Não é com isto que estou preocupado (os vícios da política institucionalizada e da democracia representativa, que não expressa de fato os anseios populares, são conhecidos e seria chover no molhado falar deles).

O que realmente me chamou a atenção foi a forma como os vereadores governistas encararam a plateia. A reunião se deu no Salão Nobre do edifício da Câmara Municipal, o qual esteve lotado durante todo o evento. Compareceram ao local para assistir à reunião da Comissão centenas de representantes de entidades, de movimentos populares (movimentos de moradia, de catadores de papel, associações de bairro, de moradores de rua, entre outros), além de muitos cidadãos não diretamente ligados a qualquer ente (como eu mesmo!) Em outras palavras: era o povo fazendo uso de sua Casa (a Câmara Municipal). Isto irritou os kassabistas.

No entanto, quando o vereador Natalini (PSDB) leu seu parecer favorável ao Executivo, ao ser vaiado pela plateia, alegou que "não tem medo de cara-feia". Evidentemente a relação que tal vereador tem com os cidadãos é o de paternalismo, pois com tal afirmação ele demonstra que não se sente um representante dos cidadãos, mas alguém que tem o privilégio de ser vereador. Não creio que um verdadeiro representante do povo usaria de artifícios como este para relacionar-se com quem o elegeu…

Mais adiante, ao comentar seu voto favorável ao Executivo, o vereador Celso Jatene (PTB) também recebeu muitas vaias da plateia. Sua reação foi mais violenta e irracional. À medida que falava, algumas pessoas ergueram em protesto folhetos com a inscrição "São Paulo à venda: quem quer comprar?". Alegou, porém, que quem o vaiava era a "claque" trazida à Câmara pelos vereadores da oposição e disse que não se importava com a "torcida" formada por membros do partido dos oposicionistas, sugerindo que aquele conjunto de pessoas que foi a Câmara protestar contra a revisão do Plano Diretor nada mais era que massa de manobra do PT, seres desprovidos de iniciativa própria e manipulados pela oposição. Posso dizer por mim: não tenho relação alguma com o PT nem com qualquer partido. Igual reação ocorreu com todos os que sentavam ao meu redor e com a totalidade da plateia: todos receberam com desagravo a declaração infeliz.

***

Qual é realmente o significado desta infeliz e antidemocrática declaração de Jatene e de seus companheiros governistas?

Ao tratar os cidadãos presentes na Câmara Municipal como "torcida" ou "massa de manobra", desprezando sua autonomia, o vereador demonstrou que não os considera sujeitos políticos plenos. O que se vê é o total desprezo pela democracia por parte de Jatene e de seus colegas governistas: ao ignorar a autonomia dos cidadãos, deixam claro que só conseguem enxergar uma relação com o povo intermediada pela heteronomia. Quando um agente público despreza a autonomia de seus pares e os considera seres heterônimos, está instaurado o despotismo. Não importa aqui se aqueles vereadores foram eleitos democraticamente ou não: só existe democracia enquanto se defende a autonomia dos sujeitos políticos. Quando Jatene insultou a plateia durante a reunião da Comissão, alegando que eles eram "massa de manobra", evidenciou que para a gestão Serra-Kassab a Política (com "p" maiúsculo, não a política partidária, mas a relação entre os cidadãos e a cidade) está sepultada. Em outubro comentei sobre a reeleição do elitista Kassab: tratava-se do fim da política. Agora a Câmara Municipal provou que eu estava correto.

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