imagens integrais do planeta

The Blue Marble ("A bolinha azul", Nasa, 1972) Alguns mitos fundadores são bastante frequentes entre as narrativas mais comuns sobre a história do ambientalismo: Rachel Carson e seu Silent Spring, James Lovelock e sua Hipótese Gaia, a Conferência de Estocolmo de 1972, o estabelecimento do Dia da Terra, entre outros episódios e personagens. Destes, um personagem menos badalado, mas ainda assim recorrente em tais narrativas, costuma ser bastante lembrado devido a uma campanha iniciada por ele pela disponibilização pública, por parte da NASA, de imagens integrais do planeta Terra — como aquela que abre este texto, apelidada de “Blue Marble” (“Bolinha azul”) e tornada pública pela agência estadunidense a partir de 1972.

Tal sujeito, Stewart Brand, é considerado um dos ícones da contracultura norte-americana, tendo de fato iniciado em 1966 uma mobilização pública pela publicação de imagens da Terra vistas do espaço. Brand começou a distribuir naquele ano bottons nos quais estava grafada a pergunta “Por que ainda não vimos imagens integrais do planeta?” A campanha surtiu tal efeito que em 1967 a NASA disponibilizou publicamente uma primeira imagem do planeta, que ficou conhecida como ATS-3 (código do satélite que a produziu) — e que foi prontamente utilizada por Brand como imagem de capa de seu lendário Whole Earth Catalog, de 1968, publicação contracultural voltada à comercialização de produtos destinados a um “modo de vida alternativo” e “auto-suficiente”.

Stewart Brand e seu botton "Por que ainda não vimos uma fotografia inteira da Terra?"
Stewart Brand e seu botton “Por que ainda não vimos uma fotografia inteira da Terra?” Fonte: http://likealittlewhiterabbit.tumblr.com/post/21599086551
Imagem produzida pelo satélite ATS-3 da NASA. Fonte: bit.ly/2isszqy
Imagem da Terra produzida pelo satélite ATS-3 da NASA.
Whole Earth Catalog, 1968.
Primeira edição do Whole Earth Catalog, produzido por Stewart Brand em 1968.

Segundo o próprio Brand, em depoimento publicado em 2006 no livro From Counterculture to Cyberculture, de Fred Turner:

Uma tarde, provavelmente em março de 1966, derramando um pouco de LSD, subi no telhado e sentei, tremendo embaixo de uma coberta, meio que observando e pensando… Estava olhando para os edifícios, observando São Francisco, pensando sobre a noção de Buckminster Fuller de que as pessoas pensam nos recursos da Terra como ilimitados porque elas acham que a Terra é plana. Olho para São Francisco da altura de 300 pés e 200 microgramas e penso que daqui eu posso ver que a Terra é curva. Tive então a ideia de que quanto mais alto você consegue ver a Terra, mais redonda ela vai ficar.

Não havia fotografias públicas integrais da Terra naquela época, apesar do fato de que já estávamos metidos em um programa espacial havia pelo menos dez anos. Comecei a esquematizar as coisas em meio à viagem. Como posso fazer a fotografia acontecer? Porque já tinha me persuadido de que tudo mudaria caso tivéssemos uma fotografia da Terra tirada do espaço.

Se a relação sugerida entre a tomada de consciência do planeta e a construção do discurso ambientalista pode ser questionada e problematizada hoje, é inegável, por outro lado, que a campanha pela disponibilização daquelas imagens tenha de fato produzido uma revolução no imaginário desde os anos 1960: hoje tomamos tais representações do planeta como algo natural, rotineiro, ainda que em 10 mil anos de civilização ocidental tenhamos entrado em contato com tais imagens apenas nos últimos 50. “Blue Marble”, aliás, costuma ser apontada como a fotografia mais reproduzida da história — quiçá trata-se da imagem mais reproduzida da história. A imagem do globo azul, verde e marrom caminhando em meio ao vazio negro que o envolve já se tornou praticamente a expressão quase natural da ideia de “mundo” — e talvez ainda não tenhamos conseguido apontar os efeitos desta associação inventada há meio-século.

Um caso curioso é o da relação estabelecida entre as noções de “ambiente” e “Terra”, já praticamente naturalizada: uma breve pesquisa no Google Imagens revela o quanto aquela representação da Terra popularizada com as imagens da NASA nos anos 1960 tem sido trabalhada e retrabalhada a ponto de frequentar o imaginário ambiental cotidiano, como as pesquisas abaixo revelam nos mais variados idiomas.

Pesquisa no Google Imagens por "ambiente" em diferentes idiomas.
Pesquisa no Google Imagens por “ambiente” em diferentes idiomas.

Parece haver nestas imagens um discurso ainda por ser melhor dissecado, materializado por alguns signos recorrentes: a mão branca segurando o planeta; os campos verdes e o céu azul; a vegetação isolada e controlada; e, sobretudo, a imagem integral do planeta — sempre prestes a ser protegida pela amigável e gigantesca mão humana. Tais imagens não evocam qualquer imaginário urbano, tecnológico, cotidiano — são, ao contrário, imagens que sugerem alguma forma de fuga, de excepcionalidade cotidiana, de aparente ruptura com o ambiente urbano. São imagens em princípio distantes do contexto contracultural que envolvia a invenção da imagem da Terra integral nos anos 1960: a força pretendida por aquelas imagens contraculturais relacionava-se com um discurso que pretendia unir de forma orgânica artifício e natureza. As imagens contemporâneas, pasteurizadas e filtradas pela caixa preta do Google, parecem ao contrário sugerir a necessidade de ausência total de artifício — e, fazendo isto, naturalizam talvez aquilo que provavelmente sempre fora a mais artificial das invenções, a própria natureza.

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