preocupar-se com a autenticidade do fotojornalismo é pauta dos anos 1930

Desde o início do ano testemunhamos nas redes sociais um burburinho recorrente sobre a autenticidade das imagens fotojornalísticas.

Primeiro foi a malfadada imagem produzida pela fotógrafa Gabriela Biló na qual a figura de um Lula em segundo plano constrastava-se com o vidro estilhaçado em primeiro plano de uma janela atingida por projétil durante os lamentáveis episódios de ataque à democracia ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023. Fruto de uma dupla exposição realizada diretamente na câmara fotográfica, a imagem foi tratada editorialmente de forma um tanto quanto questionável e imediatamente associada a um suposto desejo difuso pelo alvejamento do Presidente da República — distante da intenção expressa pela autora de reiterar a resiliência do político ante as ameaças sofridas.

O pessoal do podcast Visual+Mente já explorou exaustivamente esta questão — e tais reflexões foram recentemente publicadas na sempre excelente Revista Recorte. Apesar de uma ou outra pequena discordância, estão lá as principais considerações a serem feitas sobre o episódio e sobre a enorme, confusa e problemática repercussão que ele teve nas redes sociais.

Mais recentemente, foi a imagem de um estiloso, obstinado e sisudo Jorge Bergoglio — mais conhecido como Papa Francisco — que dominou as redes sociais. Tal qual uma estrela do rap ou um influenciador digital da moda, Papa Francisco desfilava com um casaco bastante estiloso — ao mesmo tempo de desenho contemporâneo e em diálogo com suas usuais e alvas vestes papais — em uma cena um tanto quanto pitoresca e pouco usual.

fotografia “pós-verdade”?

Tal imagem, contudo, logo se revelou obra de uma dessas inteligências artificiais como o Dall-e ou o Midjourney. Algumas pessoas se sentiram ultrajadas por terem sido expostas ao que entenderam como um ardil ou uma pegadinha. Outras abraçaram a brincadeira e passaram a compartilhar ainda mais imagens semelhantes, ainda que mais absurdas e portanto menos críveis. Outros ainda manifestaram enormes dúvidas e preocupações sobre o futuro da “autenticidade” do fotojornalismo em função da generalização de imagens produzidas num mundo “pós-verdade”.

Afinal, trata-se de uma pauta contemporânea e nova, não?

Não.

Esta pauta é tão antiga quanto o fotojornalismo e o fato de lidarmos tão mal com ela só mostra a insistente ingenuidade com que lidamos com o mundo da imagem.

o fotojornalismo nunca quis ser verdadeiro

Fotojornalismo — assim como qualquer outra expressão fotográfica ou qualquer outra representação visual produzida pela humanidade — é sempre antes uma ficção que uma “verdade”. Ou, melhor dizendo, o fotojornalismo apresenta sempre uma verdade na forma de ficção — e em nada ele se diferencia de qualquer outra forma de fotografia em função disso. Ficção (fictio), afinal, é sempre uma construção — ou mais propriamente uma formação, e pouco importa se “verdadeira” ou “falsa”, porque ela é sempre verdadeira em si mesma e potencialmente falsa se posicionada em relação a outros referenciais.

Não se trata simplesmente de uma reflexão abstrata ou puramente teórica sobre a prática da fotografia (já tão discutida por autores tão distintos como Vilem Flusser, Susan Sontag, Roland Barthes, etc), mas de um elemento presente na própria história do fotojornalismo e de uma característica inerente a uma das fotos que constituem um dos mitos de origem da profissão: a célebre imagem do miliciano abatido atribuída a Robert Capa em 1936 — embora exista quem desconfie da autoria e a atribua à esposa de Capa, Gerda Taro.

Trata-se talvez de uma das imagens mais estudadas da história da fotografia. Entre os muitos textos dedicados à imagem, destaco em particular o de Ulpiano Meneses, seja pela análise aprofundada da imagem seja pelas reflexões sobre seu entendimento como documento e fonte de pesquisa.

O que encanta nesta imagem não é simplesmente a sua força compositiva, o diálogo que estabelece com o imaginário e com a história da arte (em particular com o famoso quadro do fuzilamento de 3 de maio de 1808 de Goya) ou o fato dela capturar o momento exato em que um soldado da resistência republicana é mortalmente atingido na cabeça por uma bala disparada pelas forças fascistas que então tomavam o poder na Espanha.

O que fascina na fotografia de Capa é a possibilidade — ainda não totalmente descartada até os dias atuais — desta imagem ter sido fabricada pelo seu autor (ou autora) e pelo modelo que teria posado para a foto forjando intencionalmente a queda.

A imagem que virtualmente inaugurou o fotojornalismo na cobertura in loco de conflitos militares pode ter sido simplesmente FALSA.

E a grande questão aqui é que isto não faz diferença nenhuma, porque sendo autêntica ou não, esta imagem permanece REAL e permanece AGINDO em mentes e espíritos — e permanece reverberando e construindo imaginários (e, portanto, realidades).


As novas inteligências artificiais produtoras de imagens apresentam, é claro, novas problemáticas, potencialidades e desafios. Mas é preciso tratá-las em sua complexidade e superando um olhar ingênuo sobre as imagens que já era comum antes mesmo do surgimento dessas novas tecnologias. Não é o caso de ignorar as novas e urgentes problemáticas — como aquelas destacadas neste texto da professora e pesquisadora Gisele Beiguelman, que alerta para a emergência de uma “eugenia maquínica do olhar” a partir da generalização dessas IAs.

Contudo, se essas novas problemáticas são urgentes, não é prudente olhar para as antigas com a mesma abordagem ingênua e já há muito superada que ainda enxerga na imagem fotográfica uma expressão fiel do verdadeiro e do real. É justamente pelo potencial de criar realidades que as imagens são poderosas, não apenas de se constituir de mero índice referencial do real.

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