Cena do episódio "Where No Man Has Gone Before" de 'Jornada nas estrelas'

niemeyer onde ninguém jamais esteve

As formas singulares — ora inconfundíveis, ora caricatas — da arquitetura de Niemeyer volta e meia são apropriadas pela cultura pop em situações bastante peculiares, completamente descoladas dos contextos originais em que estão inseridas. São conhecidas as apropriações populares em arquiteturas do cotidiano, como mostra o famoso estudo de Fernando Lara, mas parece que pouco já se falou da presença do centenário mestre brasileiro em veículos da cultura de massas. A Catedral de Brasília, por exemplo, já serviu de inspiração para um monumento público localizado em um bairro popular da cidade de Los Santos, capital do estado de San Andreas, palco do video-game Grand Theft Auto V.

Além da presença nas ruas de GTA, porém, ao menos duas vezes a arquitetura de Niemeyer apareceu também como cenário para as tramas presentes no seriado Jornada nas Estrelas (1966–1969). A colunata do Palácio da Alvorada, em particular, serviu de inspiração para o ilustrador Albert Whitlock produzir painéis para utilização como pano de fundo em cenas de dois episódios: Where No Man Has Gone Before (o segundo episódio-piloto da primeira temporada da série) e Dagger of the Mind. Décadas mais tarde a mesma imagem também teria aparecido como ilustração presente em uma revista fictícia destacada em um episódio da série Deep Space Nine (1993–1999) — embora eu tenha assistido ao tal episódio e não tenha notado qualquer cena com a tal revista.

alvorada no espaço

Jornada nas estrelas, a série original (referida pelos fãs como “TOS”: The Original Series), teve um início atribulado.

O primeiro episódio-piloto produzido por seu criador, Gene Roddenberry, intitulado The Cage, foi mal recebido e considerado “cerebral demais” pelos executivos da NBC, rede para a qual ele tentava vender a proposta — também incomodara os mesmos executivos, aliás, que uma personagem feminina que sequer havia recebido um nome ocupasse uma posição de poder e não um posto subalterno no conjunto do roteiro. Devido à intermediação da Desilu (estúdio responsável pela produção do episódio e de outros populares seriados como I Love Lucy), no entanto, Roddenberry recebeu carta branca para a produção de um segundo piloto, composto por um elenco diferente, que efetivamente foi exibido em setembro de 1966 e seguido de outros episódios regulares. Este segundo piloto foi intitulado Where No Man Has Gone Before (“Onde nenhum homem jamais esteve”), expressão que caracterizaria a vinheta de abertura de todos os demais vindouros episódios de Jornada nas Estrelas.

A trama deste episódio previa que a tripulação da USS Enterprise descesse ao planeta Delta Vega, onde existiria uma planta industrial para extração dos minérios utilizados pela Federação dos Planetas Unidos. Ao ilustrador Albert Whitlock foi solicitada uma pintura para utilização como pano de fundo de ambientação e como referência de cenário para o episódio.

É provável que as imagens da recém-inaugurada nova capital brasileira circulassem em veículos de imprensa ao redor do mundo destacando o caráter um tanto “alienígena” daquelas formas niemeyerianas construídas no meio do sertão — o que deve ter motivado Whitlock a tomá-las como referência para um cenário igualmente alienígena, pitoresco e inóspito. Curiosamente, as formas palacianas do centro de poder em Brasília foram transplantadas para uma fria e agressiva planta industrial. A mesma imagem seria mais tarde reutilizada como pano de fundo para a Colônia Penal Tantalus no episódio Dagger of the Mind, exibido originalmente em novembro de 1966.

A colunata do Palácio da Alvorada se transformou num signo amplamente apropriado e reapropriado nas mais variadas situações. O edifício construído antes mesmo da realização do concurso de ideias para o plano piloto da nova capital federal tornou-se rapidamente símbolo da cidade, de modo que seu singular desenho de sua inconfundível coluna seria reproduzido inúmeras vezes — está presente, por exemplo, no brasão do Distrito Federal. Talvez Niemeyer nunca imaginasse, contudo, que suas formas seriam utilizadas até mesmo no espaço sideral, “onde ninguém jamais esteve.”

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