Texto originalmente publicado no dia 19 de abril de 2009 em http://stoa.usp.br/gaf/weblog/47980.html
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O trecho que segue foi extraído do livro Arquitetura e trabalho livre, antologia de textos de Sérgio Ferro organizados por Pedro Arantes.
Você vende seus quadros?
Vendo em galeria, como todo mundo. É um engodo, acho, pretender que a arte não seja mercadoria. Um dos títulos de livros que eu gosto bastante e que saiu na França agora é Subvertion et Subvention, de Rainer Rochlitz. O que vão fazer os que não querem vender? Vão para a Bienal, para algum lugar subvencionado pelo dinheiro público, mas vendem como qualquer outro, uma outra forma de venda. Não há como escapar. Os artistas conceituais, que quiseram fugir disso, hoje são caríssimos. A arte não é alguma coisa que se possa extrair do sistema; ao contrário, ela é um dos seus sinais mais trágicos. Se os outros trabalhos fossem livres, como no ideal de William Morris, tudo seria arte. O que eu acho que pode e deve ser feito, na medida mesma em que a arte se constituiu como um campo autônomo de pensamento, de sensibilidade, é transformar a universidade num grande centro de produção de arte. Não no sentido de hoje, quadrinho para botar em parede, mas no sentido de pesquisa, de trabalho, de conhecimento da forma, de análise da percepção, e não há lugar nenhum no mundo fazendo isso hoje. Quem faz hoje, para o uso totalmente inverso, são os publicitários. A questão do material também é importante: hoje em dia qualquer coisa virou material para a arte. Acho que numa sociedade livre isso seria bom, mas feito hoje é quase que esmagar ainda mais o trabalho. Você imagina o metalúrgico que passa o dia no forno batendo aquela merda lá, se queimando, se intoxicando, e depois vê o seu material utilizado pelo Richard Serra, por exemplo, enormes placas na rua. O Serra pegou o material dele, que ele trabalha, com sofrimento, dor e pôs lá. De maneira nenhuma aquilo é um grito, uma manifestação de liberdade para o fabricante do ferro, é quase que um roubo do sofrimento alheio.
(…)
Em O canteiro e o desenho você permanentemente faz a distinção entre arte e arquitetura e reconhece uma diferença de qualidade nos “trabalhos” envolvidos em cada uma. Para entender a arquitetura ela deve ser imediatamente compreendida como mercadoria, então vem a análise marxista, e quando você vai fazer a crítica de arte, você ainda acaba privilegiando um ponto de vista formal, um certo respeito pela obra. Existe realmente essa diferença entre o crítico de arquitetura e o crítico de arte?
A crítica que eu faço à pintura é igualzinha à da arquitetura, só que num caso há manufatura, noutro, artesanato. A diferença fundamental é que na pintura, sobretudo, fica sempre um resto de liberdade, mesmo doentia, com catapora, fica um resto, e assim há uma diferença mínima, apesar de ser uma mercadoria e uma mercadoria muito mais grosseira e evidente do que a arquitetura. E sobre isto o Adorno fala, muitas vezes, essa liberdade ainda é possível dentro da arte, custe o que custar, há que guardar, mesmo sabendo que ela é mercadoria. No texto sobre o Mahler, ele mostra como mesmo aparecendo numa nota desafinada, num acorde irregular, não permitido, aquil, ali o grito irrompe, a liberdade brota e isso há que manter. Então há uma mínima diferença, mas o andaime das análises é o mesmo, como eu já disse.
Na arquitetura não há essa liberdade?
Não é possível, o único que tem essa liberdade é o arquiteto, com a desvantagem enorme de que ele trabalha com um material completamente alheio à obra – já é uma liberdade transcrita. E objetivamente o arquiteto é muito mais cerceado por contrato, dinheiro, cliente do que o pintor.
[obs: todos os grifos são meus]
fonte: “Depoimento a um pesquisador: entrevista concedida a Pedro Arantes em junho de 2000” in ARANTES, Pedro (org.); Sergio Ferro – Arquitetura e trabalho livre; São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
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Ferro sempre faz questão de nos lembrar que, para Morris, a “arte é a expressão da alegria do homem no trabalho“.