“proposta 13″: planejamento urbano “participativo” e o jogo das elites

originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/02/16/p97/

Não é de agora que se denuncia o caráter ideológico e falacioso relacionado a certas práticas “participativas” de planejamento urbano ou das ilusões do plano diretor. Embora esteja clara a necessidade de dotar de democracia direta os processos de decisão a respeito do planejamento e do desenho das cidades, a forma como o tema tem sido abordado tem levado a uma certa legitimação de certos privilégios urbanos das elites – sobretudo neste Brasil urbano pós-Estatuto das Cidades. Toda a história a respeito do lobby pelas zonas estritamente residenciais tem a ver com isto.

Um dos tópicos de discussão mais acalorados em audiências públicas e oficinas para elaboração de planos diretores diz respeito à progressividade do imposto territorial urbano baseada na ociosidade do imóvel taxado.

Nos EUA, não é apenas a progressividade do IPTU que se revela um tema complexo. Em um país tão conservador, a própria existência do imposto incomoda. E, enquanto tal existência é até tolerada pela maior parte da população, a atualização da planta genérica de valores, por outro lado, é sempre motivo de protestos.

A proposta 13 do Estado da Califórnia (oficialmente chamada People’s Initiative to Limit Property Taxation, ou Iniciativa popular para limitar a taxação da propriedade) é um episódio relevante e curioso. Relevante pois foi a primeira decisão do gênero nos EUA – alimentando uma série de medidas semelhantes em outros Estados, além de ter sido resultado de iniciativa popular – e curioso pela forma como foi moldada a opinião pública ao longo do caso. Surgido a partir de uma demanda legítima por melhor e mais justa distribuição de verbas públicas para educação, revelou-se no final um engenhoso jogo das elites imobiliárias locais para legitimar, na letra da lei, seus interesses sobre o mercado de terras, por meio de um eficaz controle da opinião pública e por meio de um competente manuseio de certo idealismo e retórica.

Tratou-se de uma proposta de emenda à Constituição do Estado da Califórnia de iniciativa popular (promovida, ou seja, pela coleta de assinaturas) e então levada a plebiscito. Esta é a parte interessante da coisa. Embora o voto não seja obrigatório, há um aspecto interessante na forma como as propostas de iniciativa popular são lá encaradas: o Legislativo local não interfere, cabendo à população e não aos deputados e senadores estaduais referendar ou não a proposta. Como é de se esperar, com uma proposição desta natureza, campanhas pró e contrárias são rapidamente levantadas e muito dinheiro é envolvido na tentativa de influenciar a opinião pública.

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Tudo começou com a distribuição de verbas estaduais para o sistema educacional. Na Califórnia o orçamento destinado à manutenção e ampliação da rede de escolas era vinculado à taxação das propriedades urbanas. Em outras palavras: condados ricos – cujos imóveis possuíam portanto maior valor – acabavam recebendo naturalmente mais verba para sua rede de escolas públicas. Isto levou a uma série de protestos por parte das populações dos condados mais pobres e o tema foi levado à Suprema Corte. Com base na isonomia, considerou-se que todos os estudantes do Estado tinham direito à mesma parcela do total do orçamento destinado à educação.

Tais verbas, lembre-se, eram vinculadas à arrecadação do imposto sobre a propriedade. Portanto, após a decisão da Suprema Corte, assistiu-se naquela conservadora Califórnia a uma breve e não intencional política de transferência de renda: o dinheiro arrecadado nos condados mais ricos passou a alimentar a rede de escolas de bairros de minorias.

Há toda uma cultura nos EUA de entender o Estado como uma espécie de prestador de serviços pagos com o dinheiro dos impostos. É como dizer que a educação promovida pelo Estado foi paga com o dinheiro suado dos contribuintes trabalhadores. A palavra “taxpayer” é provavelmente mais forte que “citizen”. O fato de impostos originados em áreas mais ricas terem sido transferidos para áreas mais pobres foi o pretexto perfeito tomado pelo mercado imobiliário para por um fim no aumento da taxação de imóveis (que passava naquela década por uma atualização necessária e bastante pesada dos valores venais).

Os lobbyistas republicanos Howard Jarvis e Paul Gann são considerados os pais da Proposição 13. Ligados a associações de donos de imóveis e a incorporadoras, ambos iniciaram comitês populares para promover o “Sim”, além de terem sido os iniciadores da coleta de assinaturas.

O truque estava na manipulação das ideias de “justiça” e “direitos”. Associaram o aumento repentino dos impostos sobre a propriedade com o “injusto” sistema educacional que privilegiava aqueles “vagabundos” que não pagariam impostos, por morarem em bairros de baixo valor da terra. O direcionamento dado à opinião pública fez tanto efeito que o “sim” à proposta venceu com 65% dos votos. Em apenas dois condados (mais pobres, como é de se esperar), o “não” teve mais votos.

Sem dúvidas é possível identificar aí o nascimento de um conservadorismo de massas que alguns anos depois levaria à eleição de Reagan e Bush. Think-thanks conservadores como o Instituto Cato, por exemplo, celebram-na desta maneira.

Resumo: a elite usou a movimentação popular (especialmente aquela população que tinha medo de não conseguir mais pagar o IPTU devido ao seu aumento) para aprovar algo que interessava de fato a ela e apenas a ela. Ao invés de uma organização pensada sob perspectiva de classes — para promover isenção de pagamento de imposto para famílias de baixa renda, por exemplo — as elites conseguiram manter sua hegemonia com discurso e apoio popular. É um episódio com o qual temos bastante a aprender.

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Desde então, todas as propriedades californianas não podem ser taxadas em mais do que 1% de seu valor venal. Ou seja: seria impossível sequer pensar em aplicar qualquer política de progressividade como a do nosso IPTU progressivo no tempo.

Além disso, a proposta também determinou na prática o congelamento dos valores venais: permite-se apenas um aumento anual de no máximo 2% (o que provavelmente fica abaixo da inflação). A atualização total dos valores venais só são permitidas em caso de venda do imóvel, o que acaba incentivando em áreas pouco badaladas a especulação imobiliária e o estoque de terras.

Se por um lado alguns resultados foram até positivos (impede a priori uma expulsão em massa de população de determinadas áreas afetadas por valorização da terra – o imposto deixa de ser usado como arma) por outro lado, como é de se esperar em uma nítida regra de laissez-faire urbano, é praticamente impossível taxar grandes valorizações de certas regiões (por meio de políticas de extração de mais-valia fundiária via imposto), além de obviamente impedir a penalização da especulação imobiliária ou de atividades semelhantes, com grandes impactos no mercado habitacional de baixa renda. Some-se a isto o fato da California ser a mãe da urbanização dispersa e de Los Angeles ser a cidade provavelmente mais dependente do automóvel no mundo. O efeito no mercado de aluguéis também foi perverso, promovendo um aumento inesperado e sem controle dos preços no mercado residencial.

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Fora os efeitos na crise do setor imobiliário, a exigência da Emenda 13 de que qualquer nova proposta de imposto na Califórnia tenha de obter 2/3 de votos na câmara também apresenta efeitos problemáticos. Segundo a revista TIME:

Jarvis created a similarly impregnable institution. When he rode the wave of anger over skyrocketing property-tax assessments to pass Proposition 13 in 1978, he included a two-thirds vote requirement for the passage of any new taxes in California — an insurmountable obstacle built on populist allergy to any kind of new levy. Beholden to a tax-averse electorate, the state’s liberals and moderates have attempted to live with Proposition 13 while continuing to provide the state services Californians expect — freeways, higher education, prisons, assistance to needy families and, very important, essential funding to local government and school districts that vanished after the antitax measure passed.

Now, however, that balancing act no longer seems possible. In the state’s current fiscal crisis, California’s public schools stand to lose $5.3 billion on top of $7.4 billion in cuts last year. Superintendents and school boards foresee teacher layoffs, increased class sizes, the loss of computer labs and libraries and, in some districts, insolvency. Superintendent Ramon Cortines says the Los Angeles Unified School District will lay off more than 2,500 teachers.

The Legacy of Proposition 13“, junho de 2009

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A “proposta 13” tem voltado a aparecer na grande mídia por diferentes razões:

  • recentemente Paul Krugman publicou no New York Times um artigo crítico à situação de déficit público promovida pelo governo republicano de Arnold Schawrznegger e de como a limitação à taxação dificulta a promoção de políticas de bem-estar social. Há uma versão em português na Terra Magazine. Krugman não é o único, porém, a comentar a respeito dos efeitos nocivos da emenda.
  • Por outro lado, setores conservadores estão sempre dispostos a minimizar o papel da Proposta na crise fiscal, procurando a todo custo manter seus privilégios, no que eles chamam de uma cultura de “por a culpa na 13” (Blame 13)
  • Finalmente, os protestos ligados ao autoproclamado Movimento da Festa do Chá (Tea Party Protests) tomam o processo que levou à proposta 13 como um exemplo a ser seguido pelos setores conservadores para limitar ações do governo Obama e sobretudo para combater a reforma do sistema de saúde.

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