originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/04/06/manara-jodorowsky-rafael-papa/
A imagem seguinte foi retirada do livro Bórgia — Poder e incesto, segundo volume de uma séria em quadrinhos roterizada pelo cineasta, artista plástico e leitor de tarô chileno Alejandro Jodorowsky e desenhada pelo pornógrafo italiano Milo Manara sobre a trajetória da família espanhola Bórgia, importante e influente grupo na política romana de fins do século XV. A imagem é da versão brasileira, publicada pela Editora Conrad.
O personagem retratado por Jodorowsky e Manara no centro do quadro não é Leão X: trata-se na verdade do papa Alexandre VI (Rodrigo de Bórgia). A trama de Jodorowsky ocorre durante o papado de Alexandre VI e retrata com enorme licença poética personagens como a femme fatale Lucrécia Bórgia (retratada como uma angelical e ingênua donzela que de uma hora para outra se vê jogada em um misto de conspiração e corrupção — distante da Lucrécia histórica, muito mais ativa na política da família), seu irmão-amante Cesare (retratado como antiheroi), entre outros, como o marido de Lucrécia, duque de Milão, Giovanni Sforza (tomado como personagem-cômico, com seus trejeitos efeminados exageradamente ressaltados).
A imagem é claramente uma citação a esta pintura de Rafael, produzida em Roma entre 1518–19, atualmente na Galeria Ufizzi em Florença. Além da composição similar, estão lá também o livro na mesa, a lupa na mão do papa e o sino. Não deixa de ser uma citação curiosa — talvez infame — pois o personagem retratado é justamente o papa Leão X (Giovanni, dos Médici de Florença), inimigo político dos Bórgia. Leão X foi papa apenas duas décadas depois de Bórgia e foi responsável por dar continuidade ao patrocínio dos artistas da corte de Júlio II (Rafael, Michelangelo, Bramante, etc), outro inimigo de Bórgia e seu sucessor. Aliás, Júlio II também aparece na trama de Jodorowsky e Manara ainda como o cardeal Juliano della Rovere e é retratado como um invejoso mas sarcástico membro da cúpula do Vaticano.
A pintura original de Rafael é fascinante: o entrecruzamento de olhares descreve um discurso sobre o olhar, sobre a capacidade de articulação e etendimento do mundo do governante (o papa), além de sutilmente citar os jogos de poder no Vaticano, por meio da relação estabelecida entre os personagens retratados (no caso, o papa e dois de seus cardeais — um deles sendo o próprio sobrinho de Leão X e futuro papa, localizado à sua esquerda), assim como o domínio dos matizes de vermelho, suas diferentes tonalidades, além do próprio panejamento.
A citação no gibi acaba ficando banalizada: o personagem à direita do substituto de Leão X é apresentado na trama como Maquiavel, retratado por Jodorowsky como um braço-direito superficial e pouco esférico de Bórgia. O discurso sugerido na pintura de Rafael se perde completamente.
Mas enquanto entretenimento descompromissado, pop, agrada.