originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/04/04/joao-sayad-e-marilena-chaui-politica-cultura-e-cultura-politica/
Há algumas semanas assisti aos momentos finais de uma palestra proferida na FEA-USP pelo economista João Sayad, Secretário de Cultura do Estado de São Paulo. Defendeu-se ali uma política cultural elitista, centralizadora e paternalista — quase justificada por um certo paradigma de que o dever de uma secretaria de cultura é o de “civilizar” as bárbaras classes populares e simultaneamente promover equipamentos centrais caríssimos a serem usufruídos apenas pelas elites.
Ou seja: cultura feita de cima para baixo. Um pouquinho de Paulo Freire seria fundamental para vencer toda aquela burocracia.
A política de preservação do patrimônio, do modo como adotada pelas gestões demotucanas (no Estado e no Município), é significativa de como a esfera da cultura é usada como legitimadora de uma ação elitista e violenta do Estado sob o espaço urbano: seja demolindo quarteirões inteiros da Santa Ifigênia para promover a “Nova Luz” — pois tal tecido urbano não teria “valor histórico“, segundo a concepção de “valor histórico” das classes dominantes —, seja utilizando-se do mesmo “valor histórico” para justificar a expulsão da população moradora da Vila Itororó, por exemplo.
Durante a saudosa gestão de Luíza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989–1992), ocupou o cargo de Secretária de Cultura a filósofa Marilena Chauí.
Em 1991 o Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura do município organizou o Congresso Internacional Patrimônio Histórico e Cidadania, evento cujo mote era o do direito à memória. Em sua fala no encerramento do Congresso, Chauí destaca o seguinte trecho do documento-base produzido pela organização do Congresso:
[…] legal e institucionalmente há o reconhecimento da necessidade de proteção aos bens culturais em diversas modalidades. Mas a aplicação desta legislação e a ação dos órgãos públicos de preservação implicam resultados diversos e suscitam reações diferentes quando aplicadas a bens móveis e imóveis. As razões para esta disparidade não são difíceis de compreender: aplicadas a bens móveis como objetos de arte, coleções de documentos privados, fotografias, mobiliário e assim por diante, a legislação de proteção ao patrimônio histórico contribui para valorizá-los ao máximo perante as leis de mercado, por significar na prática uma espécie de certificado de autenticidade e valor cultural — que, nas sociedades capitalistas, significa igualmente valor financeiro no restrito e sofisticado negócio das “antiguidades”; mas quando aplicada aos bens imóveis de significação histórica e cultural, esta mesma legislação tem sido entendida e duramente combatida entre nós como um verdadeiro atentado aos direitos de propriedade, porque significaria na prática a desvalorização de bens particulares, na maioria das vezes com alto valor monetário.
Esta disparidade caracteriza a permanente tentativa de controle das classes dominantes sobre os critérios e as práticas de preservação neste país, que se materializa por um lado pelo cultivo do consumo sofisticado e, por outro, na aposta quanto à permanência do jogo da especulação imobiliária e o lucro desenfreado como último critério no uso do solo urbano. Se em uma grande metrópole como São Paulo a preservação do patrimônio ambiental urbano imóvel encontra tantos obstáculos, desencadeia tanta discussão e dá origem a tantos protestos de proprietários e incorporadores indignados, é justamente por ser considerada antagônica aos conceitos e políticas ditadas pelos grandes especuladores e empreiteiras, que transformam a cidade de acordo com suas diretrizes privadas — e, pelo menos até aqui, com a anuência explícita ou implícita dos poderes constituídos. […]
[DPH apud Chauí, 1991, p. 38, todos os grifos são meus]
De cara apresenta-se a surpreendentemente progressista posição institucional de uma Secretaria guiada, naqueles saudosos anos de gestão Erundina, não pelos interesses das elites da cidade mas por princípios democráticos e pelo entendimento de que há uma profunda desigualdade na produção e no controle do espaço urbano. Chauí então declara (grifos meus):
A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo estabeleceu como diretriz política a ideia e a prática da Cidadania Cultural que define a cultura como direito do cidadão e determina esse direito sob três aspectos: como direito de acesso à informação e de fruição da criação cultural; como direito de produção das obras culturais; como direito de participação nas decisões de política cultural. […]
Ao definirmos a política cultural como Cidadania Cultural e a cultura como direito, estamos operando com os dois sentidos da cultura: como um fato ao qual temos direito como agentes ou sujeitos históricos; como um valor ao qual todos têm direito numa sociedade de classes que exclui uma parte de seus cidadãos do direito à criação e à fruição das obras de pensamento e das obras de arte. Nossa política cultural tem-se proposto a enfrentar o desafio de admitir que a cultura é simultaneamente um fato e um valor, a enfrentar o paradoxo no qual a cultura é o modo de ser dos humanos e, no entanto, precisa ser tomada como um direito daqueles humanos que não podem exercer plenamente o seu ser cultural — no caso, a classe trabalhadora. A decisão de enfrentar esse paradoxo (que não existe para as classes dominantes porque para elas ser cultural e ter direito às obras culturais são uma só e mesma coisa), está consignada no cartaz e no título deste Congresso: a tomografia do cérebro mostra que a memória é um fato biológico, anatômico, fisiológico, que todos somos memoriosos e memorialistas, mas o título do congresso lembra que a memória, numa sociedade que exclui, domina, oprime, oculta os conflitos e as diferenças sob ideologias da identidade, é um valor, um direito a conquistar. Procuramos, assim, com a proposta da Cidadnia Cultural tornar inseparáveis política cultural e cultura política que buscam a democratização dos direitos. […]
Chauí, 1991, pp. 38–40
Mais adiante, em breve passagem sobre a memória, afirma:
A memória, seja como história da sociedade seja como crônica das classes sociais e de seus homens ilustres tem o papel de nos liberar do passado como fantasma, como fardo, como assombração e como repetição. […] Uma política cultural que idolatre a memória enquanto memória ou que oculte as memórias sob uma única memória oficial está irremediavelmente comprometida com as formas presentes de dominação, herdadas de um passado ignorado. Fadada à repetição e impedida de inovação tal política cultural é cúmplice do statu quo.
p. 43
Finalmente, mais adiante:
O Estado não pode colocar-se como centro de onde se define e se irradia a memória pois, ao fazê-lo, destroi a dinâmica e a diferenciação interna da memória social e política; não pode ser produtor da memória nem o definidor do que pode e deve ser preservado. […]
Numa perspectiva democrática, Mnemosyne se diz em muitos sentidos, e; particularmente, naquele que teve nas origens: desvendar o passado para reconhecer a diferença do presente e libertá-lo para inventar o futuro. Numa perspectiva socialista, História se diz em muitos sentidos e particularmente naquele que teve nas origens: compreender o passado como pressuposto do presente que o presente repõe e repete enquanto o ignorar como seu passado e que ultrapassará quando dessa compreensão nascer a prática de emancipação, que o futuro é o novo como realização das promessas não realizadas no passado nem no presente. Mnemosyne e Clio, interpretadas como pragmáticas, isto é como ligadas aos feitos do fazer humano e à esperança de reparação. Remédio e cura.
fonte: CHAUÍ, Marilena. “Política cultural, cultura política e patrimônio histórico” in DPH. O direito à memória. Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: PMSP, 1991. FAU 363.69–Sa63d
Talvez estejam aí as questões de base para pensar em uma política freireana de preservação do patrimônio…