originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/03/30/robert-moses-e-os-urbanistas-cabeludos/
Robert Moses é figura fundamental no desenvolvimento da paisagem capitalista do século XX. Ainda que seja lembrado apenas pela história do urbanismo, sua contribuição ao desenvolvimento do capitalismo nos EUA não deveria ser ignorada: foi ele o responsável direto por adaptar as cidades (mais: o próprio pensamento urbanístico, o próprio “senso comum” sobre o que deveriam ser as cidades naquele país) à lógica capitalista rodoviarista e baseada no deslocamento das pessoas por meio de veículo particular movido a gasolina.
Peter Hall, em seu clássico manual sobre a história do planejamento urbano (Cidades do Amanhã, 1988), o descreve da seguinte maneira:
Usando um Ato Estatal de 1924, que ele [Moses] pessoalmente minutara a fim de obter poderes sem precedentes (e que nada agradaram aos infelizes legisladores) para dispor de terras, fez suas parkways atravessarem as bem cuidadas propriedades dos milionários de Long Island — os Phippses, os Whitneys, os Morgans, os Winthrops — e abriu para os novaiorquinos o caminho das praias oceânicas. Isto foi feito, como quase tudo o que Moses fazia, em nome dos mais altos interesses públicos; e firmou a base do apoio oficial sem precedentes que obteve e que em seguida ampliou habilmente através do seu controle sobre a Secretaria Autônoma da Triborough Bridge and Tunnel, reunindo seu sistema de parkways num único complexo viário e ligando-o aos prolíficos conjuntos de habitação coletiva de Manhattan e do Bronx.
Mas seu espírito público tinha limites: Moses construiu os viadutos baixos demais propositadamente, impedindo com isso que tanto ônibus quanto caminhões passassem sob os vãos. Os magníficos balneários praianos, que ele criou nos terminais de suas parkways, ficaram portanto, estritamente reservados à classe média e seus proprietários de carro; os dois terços restantes da população poderiam continuar indo de metrô a Coney Island.
Qualquer semelhança com certa ponte estaiada megalomaníaca paulistana feita para ligar a casa dos ricos ao trabalho dos ricos e na qual o tráfego de bicicletas e pedestres é proibido, é mera coincidência histórica.
***
No mesmo livro de onde foram retirados os trechos do discurso de Krushev citado na postagem anterior, há também um curioso texto de Robert Moses sobre as práticas e as ideias trazidas pelos arquitetos europeus que emigraram para os EUA entre as décadas de 30 e 50.
Trata-se de um discurso, além de um tanto quanto invejoso (dado que Moses demonstra sua insatisfação com toda a publicidade que figuras como Gropius e van der Rohe possuíam), absurdamente xenofóbico. É também uma ode a um certo capitalismo pós-New Deal, valorizador igualmente do livre-mercado e de um Estado atuante na defesa de privilégios das elites, defensor de um modelo que a todo momento deve se afirmar contra a “ameaça vermelha” (seja ela qual for — e muitas vezes nem vermelha ela é).
O texto foi originalmente publicado na Revista do New York Times, em 25 de junho de 1944. O título era algo como “Sr. Moses disseca os ‘urbanistas cabeludos’: O secretário prefere o bom senso às teorias revolucionárias deles”. Curiosamente, porém, o que Moses estava aplicando nos EUA (urbanismo rodoviarista altamente dependente do petróleo) não diferia muito das propostas daqueles arquitetos europeus ligados ao urbanismo funcionalista moderno — Moses era apenas mais pragmático e entendia mais de realpolitik, mas o legado é provavelmente o mesmo. Aliás, tanto Moses quanto aqueles arquitetos (sobretudo Mies) eram igualmente especialistas em autopublicidade.
Diz Moses:
In municipal planning we must decide between revolution and common sense — between the subsidized llamas in their remote mountain temples and those who must work in the market place. It is a mistake to underestimate the revolutionaries. They reach people in high places, who in turn influence the press, universities, societies learned and otherwise, radio networks, the stage, the screen, even churches. They make the TNT for those who throw the bombs. They have their own curious and double talk, their cabalistic writings, secret passwords, and abracadabra.
Moses passa a citar ideias de Saarinen sobre planejamento urbano e as rebate de forma xenofóbica, procede então sobre Gropius:
If this strikes you [ideias de Eliel Saarinen a respeito da propriedade da terra] as pretty strong stuff, have a look at another distinguished foreign figure in our midst, Walter Gropius. […]
Intelligent Americans are just beginning to realize that Gropius is hurting our architecture by advocating a philosophy which doesn’t belong here and fundamentally offers nothing more novel than the lally column and the two-by-four timber. […]
Moses não perdõa sequer os americaníssimos Frank Lloyd Wright e Lewis Mumford:
Now for Frank Lloyd Wright of Winsconsin, another brilliant but erratic architect and planner. Regarded in Russia as our greatest builder, he has been enormously popular everywhere abroad. […]
Last year I received from Mr. Wright a copy of his book Taliesin with a friendly note. The understanding was that the book would be passed around among the men upon whom I lean for advice. This reply summarizes their conclusions: […] “Most of my boys feel that you would get further if you tried an experiment on a reasonable scale, frankly called it an experiment, and refrained from announcing that it was the pattern of all future American living. There it is. You can’t expect anything better from moles who are blind, crawl short distances under the earth, and have only the most limited objectives.”
Then there is Lewis Mumford, lecturer on planning and author of The Culture of Cities, an outspoken revolutionary, often quoted with approval by conservatives who obviously have no notion of the implications of his philosophy.
Moses conclui seu panfleto maccartista da seguinte maneira:
The man who does not love his country and his own town can do nothing for them. It does not matter whether it be the land or place of his birth or of his adoption — so long as he becomes part and parcel of it. […] The patriotic conservative will find plenty of faults at home. He should be eager to remedy them, but he must be loyal to the instituitions and to the local scene in which his lot is cast. To revolutionary planning sophisticates this will seem simple to the point of imbecility, but truths, like ballads, are always simple.
[fonte: (1944) “Mr. Moses Dissects the Long-Haired Planners” in OCKMAN, Joan (org). Architecture Culture 1943–1968. A documentary anthology. Nova Iorque: Rizzoli, 1993. pp. 56–63]
Engraçado como toda essa baboseira escrita por Moses é terrivelmente refletida hoje nos discursos dos Tea Parties, de forma ainda mais fundamentalista, porém.
***
O texto de Moses prenuncia uma certa insatisfação de setores das elites nos EUA com as atitudes políticas de vários dos intelectuais que emigraram ao país, especialmente judeus. Havia um certo sentimento generalizado entre a intelectualidade conservadora nativa de que tais emigrantes não estariam sendo “gratos” ao país que os acolheu e os teria defendido, já que para tais conservadores a esquerda é sinal de antiamericanismo.
Tom Wolfe, o bobo-da-corte conservador do new journalism que escreveria mais tarde o famigerado From Bauhaus to Our House, publicou vinte e cinco anos depois do texto de Moses o ensaio Radical Chic (de fato, Wolfe foi o criador da expressão) em que ridiculariza intelectuais como Leonard Bernstein devido ao seu apoio a grupos como os Panteras Negras. Mais sobre o caso pode ser lido em “Tom Wolfe, o idiota útil de direita”, no sítio da Agência Carta Maior.
***
Vale a pena rever esta animação de Disney: Father’s weekend (especialmente o estacionamento perto da praia). Não deixa de ser interessante que, sendo Disney o grande incentivador do american way of life, um de seus cartoons consiga fazer sutilmente uma crítica incisiva sobre o modelo robotizado de dia-a-dia da classe média estadunidense nos anos 50.