originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/03/25/arquitetura-sovietica-pos-stalin-discurso-de-krushev-aos-arquitetos/
Como mencionado na postagem anterior sobre a história da arquitetura soviética, em 1954 o então ainda recém-empossado Secretário Geral do Partido Comunista da URSS, Nikita Krushev, teria proferido um discurso sobre práticas arquitetônicas adequadas àquele país dirigido diretamente aos arquitetos praticantes soviéticos. O episódio se deu na Conferência do Sindicato de Construtores e Arquitetos (All-Union Conference of Builders and Architects, como colocado no livro consultado). Krushev pretendia antes de tudo desconstruir o legado stalinista em todos os aspectos da cultura do país, arquitetura incluída, firmando-se como um possível novo estadista a ficar para a história por ter iniciado uma nova era no desenvolvimento soviético. Foi vencido pela elite política do partido, mas os efeitos de seu discurso sobre a prática da arquitetura parecem ter perdurado: a partir de então URSS e países do Leste Europeu de um modo geral passaram a ser associados, juntamente à ainda verificada arquitetura historicista e monumental do realismo socialista stalinista, à arquitetura cotidiana sem graça dos grandes elementos pré-fabricados, conjuntos urbanos baseados em projetos padronizados e em paisagens estéreis e repetitivas.
A construção do argumento de Krushev ao longo de seu discurso (“Retirem despesas no projeto, otimizem os trabalhos dos arquitetos”; ou Remove Shortcomings in Design, Improve Work of Architects na tradução consultada) apresenta interessantes aspectos: ao mesmo tempo em que se utiliza da retórica e das ideias ligadas à arquitetura moderna para desconstruir e deslegitimar os excessos monumentais e ornamentalistas da arquitetura do stalinismo (chegando mesmo a denunciar nominalmente arquitetos ligados à academia que ele considerava incoerentes e incorretos), constroi também um discurso de combate à cultura arquitetônica do construtivismo fazendo ainda alusões a burguesismos indesejáveis presentes em tal vertente vanguardista.
O mais curioso é que, lendo o discurso, fica a impressão de que os próprios arquitetos ligados ao realismo socialista procuravam construir argumentos para justificar os excessos de suas obras porque estavam em uma luta contra o construtivismo!
Destacam-se alguns trechos do discurso (a tradução para o inglês foi publicada no livro Architecture culture, editado por Joan Ockman):
[abertura]
Comrades! Succesful industrialization, improvement in the quality and reduction in the cost of building depend to a considerable extent on design organizations, on the work of architects and designers.
The interests of industrializing construction dictate the need to reorganize the work of design organizations and to make standardized designing and application of existing standardized designs the chief thing in their work.[…]
[projetos-padrão]
Take housing construction. Why not choose the best designs for housing and repeat them many times in construction work? Let architects submit their designs for such buildings in competition
[industrialização de ciclo fechado: o nascimento de um desastre]
It is now essential to select the best designs for large-block residential buildings. Design organizations of the Moscow Soviet drafted design solutions for residential buildings with walls of large panels or blocks. The solution proposed by I.V. Zholtovsky, member of the USSR Academy of Architecture, was recognized at that time as one of the best. Since then blueprints could have been drawn from this plan, adopted as standard and used for building large-block residential construction for several years. Yet this hast not been done. […]
Why are there 38 standardized designs for schools in use at the present time? Is this expedient? […] We must select a limited number of standardized designs for apartment houses, schools, hospitals, building for kindergartens and nurseries, stores and other buildings and installations and carry out mass building only according to these designs for, let us say, five years. At that time, let us have a discussion and if there are no better designs, let us extend the use of these for another five years. What is wrong with that, comrades?
[menção aos arquitetos ligados ao realismo stalinista]
[…] Evidently there are some people who need a good explanation of the necessity for standardized designs.
[…]
Certain architects habe been carried away with putting spires on buildings, with the result that such buildings resemble churches. Do you like the silhouette of a church? I do not wish to argue about tastes, but in apartment houses, such an appearance is not necessary. The modern apartment house must not be transformed by architectural design into a replica of a church or a museum. This affords the residents no comfort, and only complicates the utilization of the building and raises its cost. Yet certain architects do not take this into consideration.
Architect Zakharov, for example, submitted plans for constructions on Bolshaya Tula Street in Moscow of apartment houses which differ little in their outlines from churches. He was asked to explain this and answered: “We have brought our plans into harmony with the tall buildings; the silhouette of the buildings must be clear.” These, it would seem, are the sort of problems which occupy Comrade Zakharov most of all. He needs beautiful silhouettes, but people need apartments. […]
And this is called architectural-artistic decoration of the building! No, comrades, these are distortions in architecture, these spoil materials and cause unnecessary expenditure. Moscow organizations took a correct stand when they dismissed Comrade Zakharov from management of the architectural studio. But it should have been done sooner for the good of the work.
[…]
[os parágrafos seguintes são os mais interessantes e contraditórios: neles há o ataque ao construtivismo mais explícito]
Some architects try to justify their incorrect stand on waste in designs by referring to the need to combat constructivism. But they waste state funds under the guise of fighting constructivism.
What is constructivism? Here is how the Large Soviet Encyclopedia, for instance, defines this tendency: “Constructivism … substitutes barren technical aspects ‘born of the construction design’ (hence the name constructivism) for artistic design. Demanding functional ‘logic’, ‘rationalism’ in construction the constructivists actually reached aesthetic admiration of form unrelated to content … The consequences of this is the antiartistic, dull ‘box style’ caracteristic of modern bourgeois architecture … Constructivism was sharply criticized in many Party directives and decrees” (Large Soviet Encyclopedia, 1953, vol. 22, p. 437)
[…]
Some architects, declaiming about the need to combat constructivism, go to the opposite extreme — they decorate building facades excessively and often unnecessarily, thus wasting state funds.
Buildings which lack towers, superstructures and porticos with columns, or have facades which are not adorned with sham detail, are called boxes and condemned as relapses into constructivism. Such architects should probably be called constructivists in reverse, since they themselves are lapsing into “aesthetic admiration of form divorced from content”.
It’s impossible to resign oneself any longer to the fact that many architects hide behind phrases about the struggle against constructivism and about socialist realism in architecture while spending people’s funds extravagantly.
[trechos finais: krushev comenta até mesmo métodos compositivos]
Constructivism must be combated by sensible means. […] We are not against beauty but against superfluities. Building facades should be beautiful and attractive because of the good proportions of the entire building, the good proportions of the window and door openings, the skillful arrangement of balconies, the correct utilization of the texture and color in the facing materials, and honest delineation of the parts and sections of the walls in large-block and large-panel construction. […]
KRUSHEV, Nikita. “Remove Shortcomings in Design, Improve Work of Architects” in OCKMAN, Joan (org.). Architecture Culture 1943–1968. A documentary anthology. Nova Iorque: Rizzoli, 1993. pp. 185–188. SIBI/USP: FAU/724.9 Ar25o
Como aponta o texto que no mesmo livro introduz o discurso (p. 184):
Ironicamente, isto [refere-se ao programa de Krushev para a arquitetura] levou a uma requalificação da arquitetura construtivista russa, agora apreciada por sua orientação técnica e funcional sobre fachadas tipo bolo-de-noiva ou o planejamento formalista do programa de reconstrução de Stálin. Em novembro de 1955 elementos estilísticos supérfluos foram eliminados. Em 1958, 70% dos componentes construtivos na URSS era pré-faricada, em oposição aos 25% de 1950. […] Porém, como demonstram os trabalhos enviados à seção soviética da exposição de Bruxelas no mesmo ano, a mudança na direção dificilmente significaria uma retomada da construção e do planejamento experimentais realizados no período revolucionário da década de 1920. Os projetos expostos em Bruxelas expunham fachadas nuas de tratamento e um número menor de simetrias obrigatórias, mas em rigidez de concepção permaneceram muito similares ao trabalho conduzido sob o regime de Stálin.
Em um certo sentido Krushev retoma alguns aspectos do debate entre o grupo de Hannes Meyer e as demais correntes dentro da Bauhaus. Seria grosseiro dizer que a agenda de Krushev para a URSS dos anos 50 corresponderia às propostas de Meyer para a Alemanha dos anos 20, mas é interessante lembrar que, no livro The Image of the Architect, descreve-se a trajetória dos egressos da Bauhaus que, com o avanço nazista, não quiseram emigrar para os EUA, escolhendo ao contrário a União Soviética ou algum dos países sob sua influência. Meyer estava entre aqueles que escolheram o caminho inverso ao tomado por Gropius e Mies van der Rohe, organizando um grupo que viajou a Moscou nos anos 30. A repressão stalinista às vanguardas foi um dos motivos para a saída do grupo da URSS: a maioria se estabeleceu em países periféricos, evitando o apoio dos EUA. Muitos, porém, trabalharam em projetos de habitação de massa nos anos 30. O grupo liderado por Ernst May (a “Brigada de May”) chegou a construir várias novas cidades em um período de três anos. Qual seria a conexão entre a breve produção soviética dos emigrantes da Bauhaus no período “heroico” em que eles lá permaneceram (e que não necessariamente poderiam ser classificados como “construtivistas”, como o grupo de Meyer, que durante sua direção na escola alemã entrou em atrito com os demais grupos vanguardistas) e a arquitetura burocratizada sugerida por Krushev?
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Há interessante material audiovisual e iconográfico neste sítio: The Khrushchev Slums.