arquitetura soviética + lelé na trip

originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/03/22/arquitetura-sovietica-lele-na-trip/

A história da arquitetura na União Soviética costuma, grosso modo, ser dividida em três grandes momentos:

  • Vanguarda: uma fase “heroica”, associada às obras arrojadas e pontuais promovidas pelos membros daquilo que ficou conhecido por vanguarda russa. De fato, porém, os grandes nomes ligados ao construtivismo — ou ao suprematismo ou ao futurismo (entre outras muitas outras correntes que normalmente se reúnem sob a salada que é a expressão “vanguarda russa”) — constituíam-se muito mais como exceção do que como regra para a produção arquitetônica do período, seja aquela mais experimental (Tátlin, Rodchenko, etc), seja aquela mais ligada a propostas concretas para a cidade socialista (como o grupo de Guinzburg). Tal fase teve breve duração (ficando a maior parte de suas realizações restrita aos anos 20) e a partir de meados dos anos 30 foi perseguida pela hegemonia stalinista.
  • Arquitetura stalinista: uma longa fase de promoção do que ficaria conhecido por realismo socialista, posição hegemônica adotada pelo Partido e associada a uma arquitetura burocratizada, acadêmica, historicista e historicizante. A relação entre uma estética monumentalista, sóbria, provida de intensa ornamentação e com profundas ligações com o poder constituído é associada também à arquitetura dos demais regimes totalitários do mesmo período (como a arquitetura do nazismo). Uma seleção interessante de projetos monumentais não construídos encontra-se neste sítio.
  • Com a morte de Stálin em meados da década de 1950 e o surgimento de posturas ditas “revisionistas” no contexto do Partido, passa-se a combater a arquitetura de ambos os períodos. Promove-se, porém, uma estética industrial em que se valoriza o baixo custo e a pré-fabricação de grandes elementos construtivos. Talvez as cidades soviéticas tenham tido os canteiros de obras mais fordistas em todo o mundo naquele momento. Os grandes conjuntos urbanos “com cara de qualquer coisa” são sinônimo deste momento que vingaria pelas próximas décadas. O período se abre com um curioso discurso de Nikita Krushev aos arquitetos soviéticos no qual, em tom de manifesto, repudia os excessos da arquitetura stalinista e os vícios “burgueses” do construtivismo, conclamando os profissionais da nação a produzirem uma arquitetura industrializada e a repetirem indefinidamente soluções baratas e padronizadas. O discurso de Krushev foi de tal forma impactante em todos os Partidos Comunistas ao redor do mundo que entende-se que foi relevante até mesmo na formulação da autocrítica de Niemeyer, elaborada logo em seguida.

A esquematização apresentada, além de evidentemente superficial, certamente não dá conta de explicar toda a arquitetura do período (assim como não ajuda em nada em vislumbrar seus motivos, suas implicações ou mesmo sua relação com os conflitos inerentes a cada período), mas olhando para a periodização nota-se que há algo de estranho com aquilo que costumamos associar à expressão “arquitetura soviética”: usualmente associamos tal arquitetura apenas a da era stalinista. Talvez seja o caso de estudar mais a fundo a produção seriada e fordista de arquitetura para as massas que ocorreu na URSS dos anos 60 em diante — em atraso, por exemplo, aos grandes conjuntos suburbanos franceses ou aos new towns britânicos que passaram a ser construídos já nos anos 40 —, levando em conta todas as suas contradições e implicações. A pré-fabricação de elementos e a industrialização do canteiro de obras certamente são objetivos a serem atingidos em um país periférico como o Brasil, mas caso o problema se mantenha no nível da discussão tecnológica, despolitizada e tentando ignorar conflitos inerentes à prática da arquitetura, perderá todo o sentido. Cabe à esquerda contemporânea elaborar a crítica aos excessos daquela esquerda burocratizada do período soviético — não faz sentido hoje ignorá-la e dizer simplesmente que foi “erro de percurso”.

***

ctrs

Lelé permanece a referência mais genial, mais inspiradora e mais lúcida. Foi preciso uma revista pop e “leiga” como a Trip para realmente fazer uma entrevista interessante com ele. 😉

Comunista quase tão histórico quanto seu mentor Oscar Niemeyer, Lelé foi à Rússia e à China conhecer tecnologias de construção. “Na Rússia, fui em 1962. Era supercomunista, achava tudo aquilo ótimo. Para a China, fui nos anos 80, fazer palestras sobre tecnologia de construção. Era uma coisa atrasadíssima”, diz o arquiteto, que hoje apoia Lula e Chávez e para quem a sociedade passaria bem melhor sem o lucro. “Quando havia o socialismo em prática no mundo, havia uma proposta. Era uma maneira de dizer não. Havia alternativa. Agora não há. Existe outro regime aí?”, questiona.

[…]

E o que pensa desse atual momento da América Latina, com Evo Morales, Hugo Chávez?
Do Chávez eu gosto! Pra mim ele é uma personalidade fantástica. Um sujeito que está comprometido com o seu povo, que enfrenta todas as coisas pra defender o povo, eu acho que isso é a essência, é a sua postura. Agora, que ele faça algumas coisas erradas, isso é próprio do ser humano… Porque se a gente vê a miséria da Bolívia, desses países, é uma coisa surpreendente. A Venezuela é tão rica em petróleo, como é que ela chegou àquele nível de miséria que existia lá? E, com o Chávez, de repente o povo está acreditando, eu acho isso tão bonito. Acho que isso é transformação. A transformação não necessita obrigatoriamente de ser uma coisa coerente, correta.

Uma questão que sempre foi associada à sua obra é a da sustentabilidade. Mas esse conceito virou certo modismo… Isso o incomoda?
Eu detesto, detesto… Mas está dando lucro ser ecologista. E, na verdade, o discurso da sustentabilidade disseminado por aí não está sendo praticado. Porque a gente precisa economizar os recursos naturais e utilizar o que a natureza nos fornece de mais barato. Sempre que eu falo sobre esse tema, uso a imagem da abelha. As abelhas lidam com uma coisa absolutamente sofisticada e escassa, que é o mel. A abelha retira o pólen das flores, faz um sacrifício enorme para transformar isso em mel. E o incrível é que a forma escolhida para fazer a colmeia, em hexágono, é a mais econômica que se tem. Seria mais fácil fazer uma casa redondinha, mas intuitivamente ela tem o cuidado de fazer hexagonal, que é a forma de juntar um casulo com o outro economizando o máximo de material. Então, quer dizer, o que o ser humano tem que fazer daqui pra frente construindo seus casulos, suas casas, suas cidades é usar a abelha como exemplo…

http://revistatrip.uol.com.br/revista/185/paginas-negras/esse-e-lele/page-1.html

No sítio entre há também uma entrevista muito boa, mais incisiva e de caráter mais técnico, com o arquiteto. Destacando:

O senhor sempre operou num sistema fechado, em que a fábrica funciona em função das necessidades de uma obra, ou de um conjunto limitado de obras, tendo como cliente o poder público. A que motivos se deve essa decisão, ou que condições o levaram a não se enquadrar no mercado da construção civil?
A construção civil nunca aceitou a minha proposta. Houve um período, em Brasília, em que trabalhei numa empresa que pensava a industrialização. Depois ela desistiu, pois não conseguiram prosseguir quando acabou o BNH, que, de certa maneira, estimulava a construção de habitações. Eles mantêm a pré-fabricação pesada de concreto, mas apenas quando isso dá um lucro direto. Mesmo assim, você vê esses viadutos sendo construídos agora do mesmo modo como fazíamos há cinquenta, oitenta anos. O processo é tão empírico, não evoluiu nada! Num mundo em que a tecnologia evolui vertiginosamente, a construção civil no Brasil continua fazendo coisas iguais há oitenta anos. Isso, em termos de tecnologia, é um atraso, evidentemente.
E o setor público, com essa conversa de proteger a iniciativa privada, já não está dando nem mais espaço para nós funcionarmos como antes. Esta fábrica é um último suspiro. Não vejo mais nenhuma oportunidade. Daqui em diante, vai ser o que as empresas querem, vão ser viadutos afundando porque elas estão ganhando mais dinheiro. As cinco maiores empresas do Brasil se juntam para fazer uma obra que afunda! Isso é o paradoxo da construção civil. Nunca vi uma coisa tão primitiva quanto cavar um túnel com dinamite! Hoje existe um “tatuzão” que faz o túnel inteiro. Mas com dinamite, que é um processo mais primitivo, o lucro é maior. De repente, cai tudo. [Lelé se refere ao desabamento da obra do túnel do metrô de São Paulo ocorrido em janeiro de 2007]

Qual a responsabilidade do arquiteto nesse atraso?
O arquiteto é muito responsável porque está abrindo mão, gradualmente, da sua função de construtor. Para mim, o arquiteto é basicamente um construtor. E com isso não quero dizer que ele vai pegar a colher de pedreiro para assentar massa. O arquiteto precisa conceber a construção do seu objeto, que precisa ficar em pé. Deve estar implícito no projeto como se constrói esse objeto. Agora, se o arquiteto está abrindo mão dessa sua prerrogativa básica para se tornar especialista em fazer fachada, fazer desenhos, isso é um problema nosso, profissional. Não adianta discutir sustentabilidade da construção se não queremos trabalhar. Isso é negligência do trabalho. É preciso enfrentar o problema da construção.

[grifos originais]

http://www.entre.arq.br/?p=1017

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A função do técnico é justamente a de desmistificar a técnica.

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