mitos sobre são paulo

originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/03/19/mitos-sobre-sao-paulo/

Não importa quantos especialistas sejam entrevistados, não importa o quanto se escreva a respeito academicamente, não importa o quanto certos argumentos simplesmente pareçam absolutamente inverossímeis: certos mitos sobre a cidade de São Paulo propagam-se há muito tempo e continuam a ser veiculados pela grande mídia dia-a-dia sem perspectiva de haver alguma clarificação sobre eles.

Obviamente, porém, tal fato não surpreente, visto que a criação e a consolidação de um “senso comum” sobre a cidade ou sobre como explicá-la é um instrumento ideológico e serve à naturalização de certos aspectos da realidade social.

Enumeremos alguns destes mitos:

1. “falta de planejamento” ou “crescimento desordenado”.

Provavelmente o mais comum dos mitos. É fácil dizer que algo não está bem por “falta de planejamento” ou porque a cidade tenha crescido sem uma regra que a ordenasse: trata-se, por vezes, quase de uma certa preguiça de pesquisar apenas um pouquinho para perceber que, na história da cidade de São Paulo, houve planejamento até em excesso.

nove de julho

Vejamos a quantidade de planos que existiram nos últimos 50 anos:

Tudo isto sem falar nos planos metropolitanos, nos planos setoriais (viário, saneamento, etc) e nas tentativas de planejamento anteriores (Plano de Avenidas, Prestes Mais, Departamento de Urbanismo, Saturnino de Brito, etc).

É preciso problematizar a ideia de que tenha havido “falta de planejamento”: trata-se evidentemente, a partir do histórico apresentado, de uma construção ideológica. Além da preguiça intelectual quando se tenta explicar algum fenômeno urbano utilizando-se deste argumento, além de tentar redimir o poder público da responsabilidade pelo tal “crescimento caótico”, “desordenado” da cidade, a construção ideológica responsável pelo senso comum de que tenha havido “falta de planejamento” é responsável também, sobretudo, por alimentar um outro mito a ser apresentado logo abaixo, o de que a grande culpa pelos problemas enfrentados pela cidade seja da população que a ocupou de forma irregular. Por trás da “falta de planejamento” normalmente se esconde um discurso elitista de criminalização da população que construiu a cidade.

Há outro ponto importante: planejamento não significa, em princípio, nada de positivo, caso esteja esvaziado de significado político. A visão tecnocrática de que o planejamento, por si só, seria responsável por dar conta do desenvolvimento urbano é também uma visão ideológica construída e alimentada pela ideia de “falta de planejamento”. Ao se dizer isto sutilmente se está afirmando que, em um mundo ideal, um conjunto restrito de burocratas especialistas selecionados para a função seria o único grupo necessário para planejar os destinos da cidade. Obviamente que tal grupo, oriundo das elites e representante natural das elites, planejaria apenas para as elites. Como se sabe, nenhum conhecimento científico e técnico é neutro. Técnicos e especialistas são necessários, mas sua função é justamente desmistificar a técnica e politizar o conhecimento especializado.

Ainda outro ponto relevante: como aponta Villaça, a ineficácia histórica dos planos apresentados é também deliberadamente construída. A “era dos planos sem mapa” é apenas indicativa de um momento em que a ideia de planejamento foi usada justamente para justificar a ação direcionada das elites sobre o espaço urbano, priviliegiando a atuação do Estado em suas próprias áreas de moradia, trabalho e circulação. É só olhar para a complexidade do sistema viário presente no vetor sudoeste da cidade (quantidade de vias perimetrais e radiais, quantidade de estações de metrô, privilégio a esta região na expansão do sistema, etc) e na quantidade limitada de vias estruturais presentes, por exemplo, na Zona Leste (onde elas funcionam apenas para levar a massa trabalhadora a seus postos de trabalho, esprimidas ao máximo no menor número possível de ônibus, trem e metrô). A técnica passa a ser usada para legitimar a atuação privilegiada da ação planejadora nas áreas de interesse das elites.

E, finalmente: a expansão aparentemente “desordenada” da mancha urbana seguiu, de fato, uma ordem. Foi planejada. A localização dos empreendimentos da COHAB, do BNH, da CDHU, entre outros, durante as décadas de 60, 70 e 80, sempre em periferias distantes e desprovidas de infraestrutura é uma construção histórica deliberada, planejada, projetada segundo um raciocínio urbano elitista. Ao se localizarem tais empreendimentos em tais regiões, até então ermas e de ocupação rarefeita, o que se promoveu, além de calar a boca do povo (visto que recebem a tão sonhada casa própria em um lugar tão distante que fica inviável sua organização social), foi a especulação imobiliária das regiões entre as periferias e as áreas centrais, além do estímulo à ocupação das áreas envoltórias. A expansão da mancha urbana, portanto, não foi “por acaso”, “desordenada”, mas foi muito bem pensada como estratégia de isolamento do povo e de espoliação urbana.

Mais sobre o assunto:

  • VILLAÇA, Flávio. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”, in DEAK e SCHIFFER. O processo de urbanização no Brasil, São Paulo: EDUSP, 1999.
  • _____. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo: edição do autor, 2005.
  • FELDMAN, Sarah. São Paulo: planejamento e zoneamento, 1947–1972. São Paulo: Edusp, 2005.

2. “a culpa é dos migrantes”

Este mito, além de evidentemente xenofóbico, criminoso e preconceituoso, simplesmente não possui qualquer embasamento estatístico. Hoje, há mais gente saindo de São Paulo do que entrando na cidade, o crescimento demográfico se dá sobretudo pelo crescimento vegetativo.

Normalmente se utiliza este mito para justificar o ataque às populações que ocupam regiões ambientalmente frágeis: constroi-se o argumento de que tais populações, alheias à cidade, teriam se apropriado irregularmente de espaços de proteção ambiental (como as áreas de mananciais) e seriam elas as responsáveis diretas pelas enchentes e similares, além de poluir as águas usadas pela cidade. De fato, a ocupação irregular de áreas de proteção ambiental gera resultados desastrosos, mas ninguém vai morar em locais sem infraestrutura (com esgoto a céu aberto, longe de escolas, etc) porque quer, mas só o faz pois tem negado seu direito à cidade e à habitação digna e bem localizada. E a negação deste direito está diretamente relacionado à forma como as elites se apropriam do Estado e direcionam os investimentos públicos às suas áreas de sociabilidade. São as mesmas elites, aliás, que controlam o preço da terra na cidade e mantém ociosos edifícios em áreas centrais, por exemplo.

A criminalização da pobreza é usada como justificativa para o seu massacre.

Além disso, também é relevante a construção ideológica da própria ideia de “cidade”: como lembra Villaça, chama-se o “lado de cá” às áreas de concentração das elites, enquanto o “lado de lá” se refere às áreas de moradia das classes populares.

3. “São Paulo tem gente demais”

Este mito é parcialmente verdadeiro, mas seu lado parcialmente falso é o mais utilizado quando se pretende criminalizar as classes populares (em decorrência do mito anterior).

O município possui 1500 km2 e uma população de aproximadamente 11,5 milhões de pessoa. Uma divisão rápida de um valor pelo outro apresenta uma densidade demográfica de aproximadamente 75 habitantes por hectare, um número absurdamente baixo. O extremo sul, o extremo leste e o extremo norte da cidade são áreas de proteção ambiental. Mesmo que tais regiões correspondessem a um terço da área da cidade, ainda assim a área ocupável teria uma densidade bastante baixa (cerca de 115 hab./ha). O mito é parcialmente verdadeiro na medida em que São Paulo se encontra entre as cidades mais populosas do mundo, mas, como se vê pelos números, está muito longe de ser uma das mais povoadas. Trata-se da sexta cidade mais populosa, mas não se encontra nem mesmo entre as 50 mais povoadas.

Com isto, não se quer concluir que a cidade poderia multiplicar sua população: o que ocorre, de fato, é a ocupação rarefeita de determinadas regiões centrais e a superocupação de determinadas regiões periféricas. Uma cidade assim, em que bairros como os Jardins (verdadeiros enclaves urbanos, barreiras em pleno centro da cidade) possuem densidades baixíssimas e enquanto as favelas das periferias extremas são ultra-densas, simplesmente não se sustenta: não há sistema de transporte público que aguente tanta pressão. A densidade do distrito da Sé é de 200 hab/ha. A densidade do distrito de República é de 250 hab./ha. A densidade de vários bairros periféricos passa dos 400. No entanto, a maior proporção de domicílios ociosos está justamente nos distritos centrais.

paliteiro

A verticalização sofrida pelo anel de bairros ao redor do centro de São Paulo (Moema, Tatuapé, Santana, etc) também contribui para a expulsão da população para regiões mais distantes: por incrível que pareça, quanto mais se verticaliza, menos gente passa a morar nestes bairros. Uma quadra que antes possuía várias casinhas geminadas (como era comum nas antigas vilinhas operárias), com frentes de 5, 4, às vezes até 3 metros de testada, dá lugar a uma ou duas torres residenciais com apenas dois apartamentos por andar, cercadas por muros eletrocutados e com vários andares de garagem. A densidade acaba diminuindo (menos famílias e menos pessoas por família).

O mito, no entanto, do “excesso de gente” acaba sendo usado justamente para criminalizar as populações que moram nos bairros mais periféricos, justamente os mais densos.

zona leste

4. Outros mitos

Há ainda uma série de outros mitos que dia-a-dia espalham-se pela cidade, mas não tão violentos quanto os mitos acima. Um deles, por exemplo, diz que o “metrô é muito caro para uma cidade pobre como São Paulo”. De fato, o custo de uma linha de metrô é elevadíssimo. Mas ele é necessário (pois é o único sistema que pode atuar como elemento estruturador da rede de mobilidade de uma metrópole como São Paulo). Além disso, o custo do metrô por passageiro transportado, ao longo do tempo, tende a ser mais econômico que o custo de outros sistemas. No entanto, este mito continua a ser usado para justificar, por exemplo, que um bairro como o Butantã possa ser servido pelo metrô e que um bairro como Cidade Tiradentes seja, ao contrário, servido por um sistema de média-capacidade, insuficiente e precário, pretensamente mais barado, como o monotrilho. Ornitorrinco: para os ricos, o primeiro mundo, para os pobres, o que resta. No fundo, tais mitos são simplesmente armas de legitimação dos privilégios das elites na cidade.

Outro mito recorrente é o de que “não se fiscalizam as obras da cidade”. Uma rápida visita a bairros como Jardins, Moema, Pinheiros, Butantã, etc, revelará que todas as obras estão regularizadas e fiscalizadas. Afinal, a legislação foi durante décadas remendada e otimizada para evitar transtornos a proprietários de imóveis destas regiões. No restante da cidade, o império das construções irregulares se dá sobretudo por desinteresse do Estado em atuar em tais regiões: facilita a espoliação urbana. São regiões, além disso, em que a legislação é imposta e nas quais as leis pouco tem a dizer à população local. O mito, no entanto, mais uma vez, é usado para criminalizar a atuação das classes populares no tecido urbano.

Estética da ordem e da desordem, dialética da malandragem: os mitos sobre São Paulo dizem muito dos preconceitos de suas elites e da violência a que é submetido seu povo.

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