Escrevi esse comentário quando ainda estava na graduação — puxa, como eu escrevia mal! 🙂
Le Corbusier era de tal forma visionário que até seu celebrado e mitificado projeto Dom-ino pode mesmo ser entendido como uma espécie de previsão macabra da forma como viria a se desenvolver a autoconstrução baseada em materiais não vernaculares, semi-industrializados, em contextos periféricos nos quais a precariedade é condição estrutural para a modernidade. Não está aqui em jogo a operação projetual manifesta pela força expressiva presente no esquema que todos conhecem: não importa que o raciocínio construtivo usual da autoconstrução periférica seja diverso daquele sugerido pelo mestre franco-suíço, em que a grade estrutural encontra-se recuada, visto que a principal característica daquela seja, ao contrário, o fechamento das quinas com a peça estrutural de seção quadrada.
Corbusier sugeria claramente recuar os pilares a fim de desenvolver a retórica da fachada livre da estrutura (bandeira que conseguiu difundir com apenas uma perspectiva amplamente republicada — os demais desenhos, como o corte em que consta um mal vislumbrado caixão perdido, nunca são reeditados). A solução tecnológica obviamente ainda era secundária naquela década de 1910: a escada, cujo patamar está em balanço, é sempre apontada como “arrojada” pelos historiadores, mas na prática ela denuncia o desinteresse de Corbusier em explicar como construir a coisa.

Não é esta retórica, porém, que interessa. Corbusier, entre outros, previu dois aspectos para a “nova arquitetura” no esquema dom-ino: 1. a retórica da separação entre estrutura e vedação por meio do recuo da grade em relação à fachada; 2. uma lógica construtiva baseada na incorporação de elementos definidores do espaço arquitetônico sobre uma estrutura-suporte. Embora este último aspecto já estivesse presente desde os primeiros experimentos comerciais de vulto com concreto armado e aço, é nesta proposta de Le Corbusier que ele ganha uma certa dimensão mítica, tratando-se talvez da primeira formulação teórica de uma apropriação da tecnologia pelos produtores do espaço de vida cotidiano e popular.
O que Corbusier não previra — e nem era essa sua preocupação — foi o massacre que a apropriação de um esquema de produção supostamente industrial em contexto semiartesanal, de produção manufatureira, causaria. Enquanto a arquitetura “autoconstruída” (com bases industriais, difundida nos subúrbios de classe média) de países centrais é caracterizada por esquemas como o steel (ou timber) framing tão celebrados por gente como Breuer e Gropius — ou seja, peças estruturais leves de madeira ou aço, pré-fabricadas, associadas a uma vedação composta por paineis ou paredes secas — a autoconstrução da periferia do capitalismo soube se utilizar de componentes produzidos em fabriquetas improvisadas (lajotas, blocos, viguetas) associados ao concreto moldado no canteiro. A paisagem resultante, porém, lembra uma assustadora versão de uma certa modernidade “distorcida” enquanto ideia mas “autêntica” enquanto fato material: um infindável conjunto de corredores e vielas em que impera a autoridade do grid e do plano.
Há quem diga que nossos espaços autoconstruídos lembrem cidades medievais. Olhando mais atentamente trata-se, ao contrário, da realidade do plano em uma espécie de “freak show”. Corbusier estaria mais contente com Brasília Teimosa ou com a Brasília de Lúcio Costa?

Os comentários acima foram inspirados pelas imagens presentes no artigo Architecture Without Architects—Another Anarchist Approach da revista e-flux. A obra do fotógrafo Bas Princen também trabalha com o tema.
