esquema dom-ino e a autoconstrução

Esquema dom-ino, Le Corbusier

Escrevi esse comentário quando ainda estava na graduação — puxa, como eu escrevia mal! 🙂

Le Corbusier era de tal forma visionário que até seu celebrado e mitificado projeto Dom-ino pode mesmo ser entendido como uma espécie de previsão macabra da forma como viria a se desenvolver a autoconstrução baseada em materiais não vernaculares, semi-industrializados, em contextos periféricos nos quais a precariedade é condição estrutural para a modernidade. Não está aqui em jogo a operação projetual manifesta pela força expressiva presente no esquema que todos conhecem: não importa que o raciocínio construtivo usual da autoconstrução periférica seja diverso daquele sugerido pelo mestre franco-suíço, em que a grade estrutural encontra-se recuada, visto que a principal característica daquela seja, ao contrário, o fechamento das quinas com a peça estrutural de seção quadrada.

Corbusier sugeria claramente recuar os pilares a fim de desenvolver a retórica da fachada livre da estrutura (bandeira que conseguiu difundir com apenas uma perspectiva amplamente republicada — os demais desenhos, como o corte em que consta um mal vislumbrado caixão perdido, nunca são reeditados). A solução tecnológica obviamente ainda era secundária naquela década de 1910: a escada, cujo patamar está em balanço, é sempre apontada como “arrojada” pelos historiadores, mas na prática ela denuncia o desinteresse de Corbusier em explicar como construir a coisa.

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Residência autoconstruída em Buenos Aires (fonte: @rackyross http://www.flickr.com/photos/25125125@N00/)

Não é esta retórica, porém, que interessa. Corbusier, entre outros, previu dois aspectos para a “nova arquitetura” no esquema dom-ino: 1. a retórica da separação entre estrutura e vedação por meio do recuo da grade em relação à fachada; 2. uma lógica construtiva baseada na incorporação de elementos definidores do espaço arquitetônico sobre uma estrutura-suporte. Embora este último aspecto já estivesse presente desde os primeiros experimentos comerciais de vulto com concreto armado e aço, é nesta proposta de Le Corbusier que ele ganha uma certa dimensão mítica, tratando-se talvez da primeira formulação teórica de uma apropriação da tecnologia pelos produtores do espaço de vida cotidiano e popular.

O que Corbusier não previra — e nem era essa sua preocupação — foi o massacre que a apropriação de um esquema de produção supostamente industrial em contexto semiartesanal, de produção manufatureira, causaria. Enquanto a arquitetura “autoconstruída” (com bases industriais, difundida nos subúrbios de classe média) de países centrais é caracterizada por esquemas como o steel (ou timber) framing tão celebrados por gente como Breuer e Gropius — ou seja, peças estruturais leves de madeira ou aço, pré-fabricadas, associadas a uma vedação composta por paineis ou paredes secas — a autoconstrução da periferia do capitalismo soube se utilizar de componentes produzidos em fabriquetas improvisadas (lajotas, blocos, viguetas) associados ao concreto moldado no canteiro. A paisagem resultante, porém, lembra uma assustadora versão de uma certa modernidade “distorcida” enquanto ideia mas “autêntica” enquanto fato material: um infindável conjunto de corredores e vielas em que impera a autoridade do grid e do plano.

Há quem diga que nossos espaços autoconstruídos lembrem cidades medievais. Olhando mais atentamente trata-se, ao contrário, da realidade do plano em uma espécie de “freak show”. Corbusier estaria mais contente com Brasília Teimosa ou com a Brasília de Lúcio Costa?

Conjunto próximo ao Pelourinho, Salvador, Bahia
Autoconstrução próxima ao centro de Salvador, Bahia

Os comentários acima foram inspirados pelas imagens presentes no artigo Architecture Without Architects—Another Anarchist Approach da revista e-flux. A obra do fotógrafo Bas Princen também trabalha com o tema.

Esquema remodelado. Fonte: http://www.quondam.com/21/2140.htm
Esquema remodelado. Fonte: http://www.quondam.com/21/2140.htm

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