A revista Equipe de obra, interessante publicação da editora Pini e do Senai, é destinada sobretudo aos operários da construção civil, entre outros profissionais da área. Para atingi-los ela aparentemente adota algumas estratégias: é razoavelmente pequena (e, portanto, de leitura ágil e rápida) e se utiliza bastante de artifícios como infografia e textos curtos. Além de reunir notícias da área da construção civil, a publicação apresenta a cada edição uma coleção de dicas e orientações a respeito de procedimentos técnicos voltados à prática no canteiro. É possível ter acesso na internet ao conteúdo integral de todas as suas edições.
Em edição recente, a publicação destacou algo que foi por ela identificado como uma “inovação” profissional na prática da construção civil: rodízio de funções em um mesmo canteiro de obras. Lembre-se que ela é voltada ao público operacional dos canteiros: trata-se, portanto, de uma mensagem indireta a eles sobre o que seja “inovação” (e, indiretamente, em como colaborar com ela).

inovação
“Inovação”, como se sabe, é uma destas palavras da moda do capitalismo contemporâneo. Costuma-se defini-la como a transformação em um processo ou prática consolidadas que resulte no aumento de sua eficiência ou na promoção de seu aperfeiçoamento. Em muitos casos, porém, a “inovação” nada mais é que um eufemismo para precarização do trabalho: o processo ou técnica aperfeiçoada envolve, por vezes, nada menos que o aumento da extração de mais-valia, seja ela relativa ou absoluta, na medida em que a técnica ou processo aperfeiçoado ou introduzido no fluxo de trabalho impõe o fim da necessidade de uso de determinados elementos de força de trabalho (como na introdução de tecnologia mecanizada onde antes havia braços e pernas humanas) ou o maior desgaste de um mesmo trabalhador (como quando se introduzem novas técnicas que permitam que um mesmo trabalhador labore mais recebendo o mesmo). Em ambos os casos gera, portanto, perdas para o trabalhador e ganhos para o capitalista.
É neste sentido que não causa surpresa o fato da revista ter considerado uma “inovação” a implantação do rodízio de funções no canteiro de obras, um procedimento que não possui nada de “inovador” em ambientes de trabalho cooperativo ou colaborativo, por exemplo.
Segunda a nota publicada na revista:
Rodízio de funções
Ao se colocarem à disposição da diretoria da empresa para exercerem funções diferentes das quais foram contratados, os próprios funcionários da Ishikawa Engenharia resolveram o problema de rotatividade de trabalhadores que acontece conforme as etapas da obra são cumpridas. Haruo Ishikawa, proprietário da empresa, diz que com o rodízio de funções ele não precisa dispensar funcionários, o que evita desemprego e custos trabalhistas. Segundo ele, as funções mais indicadas para o rodízio são as de carpinteiro, pedreiro e ajudante, mas todos podem atuar dessa forma. No entanto, ressalta Ishikawa, a vontade do trabalhador precisa prevalecer sempre. Caso contrário, o rodízio é ilegal.Fonte: http://www.equipedeobra.com.br/construcao-reforma/56/artigo276975-1.asp
mcdonaldização
Como se vê, o que aparentemente ocorreu na prática foi a consolidação de uma prática de precarização: os funcionários, receosos em perderem o emprego, submeteram-se à necessidade de cumprir funções que deveriam ser responsabilidade de outros funcionários (os quais, portanto, deixariam de ser contratados).
Aparentemente, poder-se-ia argumentar, o rodízio teria gerado aumento de autonomia: um mesmo operário teria passado a trabalhar em diferentes etapas, de modo a superar o famoso problema apontado por Sérgio Ferro nos anos 1960 de alienação do trabalho no canteiro por meio da super-especialização de funções impostas pela manufatura que o caracteriza.
Parece-me, no entanto, tratar-se de algo bem mais perverso: ao invés de promover a integração do trabalhador com o todo do processo produtivo (o que geraria, portanto, algum mínimo nível de autonomia no trabalho), de forma semelhante ao que ocorre em cooperativas ou em coletivos horizontais, o que ocorreu ali estabelece relações com algo que tem estado sempre na vanguarda da exploração da capitalismo já há algum tempo: o rodízio “colaborativo” imposto por empresas como McDonald’s a seus funcionários, de modo a nivelar salários por baixo e a impor um ritmo alucinante de trabalho.

Caso este episódio se repita em outros canteiros, talvez assistamos mesmo à superação da forma com que Ferro enxergava a exploração do trabalho nos canteiros dos anos 1960. Esta superação, no entanto, não virá com a substituição da extração de mais-valia absoluta pela relativa (por meio da industrialização da arquitetura, por exemplo), mas por meio da substituição de uma forma absoluta explícita por outra forma absoluta mais sutil, embora bem mais adaptada a estes tempos em que o capital adota desavergonhadamente expressões que antes pareciam contra-culturais, como a “solidariedade” entre os trabalhadores. Um canteiro com rodízio de funções pode parecer mais solidário, mas continua tendo capataz, continua sendo guiado por um desenho que lhe é alienígena e continua a concentrar a riqueza nele produzida nas mãos de poucos.
observação
As imagens que acompanham este texto não possuem qualquer relação com a notícia citada.