"tijolo": uma das palavras-geradoras de uma das experiências educativas de Paulo Freire

paulo freire e o power point

A digitalização do acervo do professor Paulo Freire e sua livre e ampla disponibilização na internet tem sido uma competente e bem-vinda iniciativa do Instituto Paulo Freire. É delicioso sobretudo verificar o acervo iconográfico já disponível.

De fato, parte das imagens disponíveis já havia sido disponibilizada há mais tempo pelos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A nova centralização e organização da totalidade do acervo de Freire, no entanto, e sua extroversão pública, são iniciativas elogiáveis.

iconografia freireana

"tijolo": uma das palavras-geradoras de uma das experiências educativas de Paulo Freire
palavra geradora "tijolo"

Entre as preciosidades disponibilizadas estão diapositivos utilizados por Paulo Freire (ou produzidos a partir de diretrizes estabelecidas em sua obra) em processos de educação no contexto do Programa Nacional de Alfabetização instituído pelo governo João Goulart, o qual foi coordenado pelo educador pernambucano. Os eslaides eram usados como suporte à discussão e decodificação das palavras geradoras ali tematizadas, intrinsecamente ligadas à realidade local de cada grupo de educandos com quem Freire e os demais educadores trabalhavam. O universo vocabular dos grupos de estudantes era dialogicamente pesquisado pelos educadores, de modo a constituir um material de referência que pudesse ser plenamente lido e discutido (seja em sua representação na forma de palavra — de modo a incentivar o processo de alfabetização —, seja enquanto representação do mundo e de seus limites, em um ato político dotado de autonomia e amorosidade).

brennand

http://www.flickr.com/apps/slideshow/show.swf?v=124984

Entre as imagens é possível também verificar o modo como Freire se utilizava das famosas gravuras produzidas pelo ceramista recifense Francisco Brennand como suportes para a discussão dos temas e das palavras geradoras. As imagens são lindas e nos estimulam a imaginar como se reagia a elas e como se dialogava com elas nos círculos de cultura.

As peças foram censuradas durante o regime militar. O educador Fernando Azevedo resgatou uma entrevista de Brennand em que ele comenta o episódio:

Eu fui apresentado a Paulo Freire por Ariano Suassuna. Então, Freireme pediu para fazer algumas dezenas de desenhos para ilustrar seumétodo de alfabetização. As peças foram apreendidas e eu consegui resgatar seis, mas o próprio educador me disse que as outras estavam microfilmadas. Há pelo menos um registro delas.

O eslaide final do conjunto, curiosamente, vaticinava os acontecimentos que se aproximavam: a palavra “fim” em letras garrafais acompanhava um pequeno e incômodo “1964”.

powerpoint

O conjunto de diapositivos faz lembrar as usuais — e por vezes irritantes — apresentações eletrônicas dos tempos atuais (do tipo Keynote ou PowerPoint). Curiosamente, a forma como o recurso era utilizado por Freire é diversas vezes mais inteligente e consistente que o uso inconsequente que a maior parte das pessoas faz hoje de ferramentas como o PowerPoint: os diapositivos de Freire são concisos, coerentes e reduzem-se ao mínimo necessário enquanto estímulos disparadores de possibilidades dialógicas, enquanto são comuns nas apresentações cotidianas de hoje os famosos e inúteis textos em tópico, múltiplas imagens, animações e efeitos de transição fora de lugar, entre outros erros básicos de composição e design.

Edwart Tufte, especialista em design de informação visual, tem promovido uma cruzada contra o uso indevido e indiscriminado de ferramentas como o PowerPoint há anos: juntando a péssima formação visual das pessoas, a propensão à palavra exagerada mais do que à informação estritamente necessária e a distração e dispersão causadas pelos eslaides eletrônicos, Tufte alega que o PowerPoint estimula um limitado processo de cognição em seus usuários, os quais passam a tentar organizar o conhecimento (complexo) por meio de ferramentas redutoras e falhas, como os tais tópicos numerados, gráficos simplórios, bem como as transições lineares e falsamente evolutivas de um argumento a outro. Toda a complexidade com a qual a visualidade poderia dialogar se perde em uma sequência patética de informações e sentenças soltas e fragmentadas, falsamente unidas em uma ilusória evolução de pensamento que ocorre de um eslaide a outro. O medo de Tufte está fundamentalmente no fato das pessoas incorporarem o PowerPoint em seus modos de pensar o mundo, de um modo geral, e não só na forma como elas organizam suas apresentações, naquilo que chama de “cultura do PowerPoint”.

Segundo a Wikipédia, Tufte particularmente denuncia os seguintes usos inadequados de apresentações de tipo PowerPoint:

  • É utilizado como um guia para o apresentador, ao invés de ser um complemento de sua fala para a audiência;
  • Inúteis e mal desenhadas opções de gráficos e tabelas;
  • As ferramentas de organização de texto do programa sugerem a construção de uma (por vezes falsa) hierarquia complicada para a apresentação do argumento. O caráter linear da ferramenta ainda força o usuário a repetir a hierarquia em todos os eslaides;
  • Tipografia e ferramentas de design pobres utilizadas por usuários com formação visual e gráfica deficitária;
  • Enfim: pensamento simplificador, envolvendo tópicos de pensamento reduzidos a caixinhas de texto e argumentos estruturados transformados em informações fragmentadas mal articuladas (pode-se argumentar que a fragmentação propicia e facilita o pensamento por analogia e associação de imagens aparentemente soltas: isto não ocorre de fato na maior parte dos casos justamente pela intenção dos usuários em estruturarem argumentos lineares com começo, meio e fim, ao invés de uma abordagem mais próxima de uma “deriva” intelectual).
  • Os itens em tópico, os gráficos e tabelas reunidos sugerem uma falsa sensação de objetividade, neutralidade e “ciência” às apresentações em PowerPoint.

Apesar de excessivamente alarmista (e, por vezes, exageradamente conservador), Tufte expõe no fundo uma tendência à espetacularização cotidiana do discurso (seja ele qual for): toda e qualquer comunicação entre pessoas passa a ser substituída (ao invés de ser mediada) pela apresentação em PowerPoint. Designers profissionais já conhecem estes problemas há tempos, mas não deveria ser com eles que devíamos nos preocupar: é o público leigo que não só utiliza mal estas ferramentas gráficas cotidianamente como condiciona seu modo de pensar a elas.

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O modo como Freire adotava o suporte visual em seu processo de diálogo (lembrando que para o autor não há educação sem dialogicidade) revela-se, portanto, muito mais avançado que o uso cotidiano atual do PowerPoint. Freire ressaltava o fato dos eslaides serem meros suportes: sua construção se dava a partir do diálogo (as palavras eram escolhidas no cotidiano dos educandos, as imagens diziam respeito à vida deles e a suas situações-limite, etc) e eles não o substituíam, mas serviam de objeto mediatizador da produção de conhecimento. Educadores, educandos e o suporte visual compunham uma tríade que dialogava mutuamente, enquanto nas maçantes apresentações de hoje (seja na academia das “comunicações orais” de artigos, seja no mundo corporativo dos “estudos de caso”) parece que o apresentador é substituído pelo patético espetáculo que ele constrói no PowerPoint.

O que fica é a vontade de explorar com mais profundidade o Paulo Freire “designer”. Ou, em outras palavras, o papel complexo e rico que compria a visualidade em seu discurso pedagógico: nem espetáculo nem mero objeto secundário, mas agente com o qual dialogava.

"ti-jo-lo": decodificação da palavra geradora
decodificação da palavra geradora "tijolo"

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