Milton Glaser, célebre designer estadunidense, faleceu no dia 26 de junho de 2020 — e, por um acaso do destino, 26 de junho também é seu aniversário: Glaser nascera nessa data em 1929. Glaser foi sem dúvidas um bom empresário do design: ao mesmo tempo em que teve sucesso em se posicionar tanto no cânone do design do século XX como no rol de formas amplamente assimiladas no imaginário cotidiano (como demonstram produções sempre lembradas como o cartaz de Bob Dylan ou a campanha I♡NY), foi um empresário habilidoso e consciente de seu papel como produtor e vendedor de mercadorias gráficas.
Movimentava-se de tal modo hábil entre ambientes da alta cultura e da cultura popular de massas que reproduções de seu célebre cartaz de Bob Dylan encontram-se ao mesmo tempo no acervo do MoMA e à disposição para compra por nós, meros mortais, em seu sítio oficial, por míseros 100 dólares.
O pessoal do Visual+Mente, excelente podcast dedicado ao mundo do design, publicou recentemente um programa em homenagem ao personagem. Nele, Bruno Porto lembra, entre outros trabalhos, do redesenho da marca da DC Comics realizado por Glaser em 1977, cujo resultado passou a ser chamado pelos leitores de “DC bullet”.
Ao longo da história da DC Comics a empresa já utilizou uma infinidade de logotipos e símbolos distintos. De todos, o desenho de Glaser é provavelmente o mais bonito: despretensioso, popular, orgulhosamente pulp.
Vale a pena comentar toda essa trajetória. As imagens das marcas correspondem àquelas disponíveis na Logopedia.
dos anos 40 aos anos 70
Os leitores costumam se referir aos anos 1930 e 1940 como a “Era de Ouro” dos quadrinhos de super-heróis. O momento imediatamente seguinte, (meados dos anos 50 aos anos 70) costuma ser chamado de “Era de Prata”. Neste intervalo a empresa utilizara como marca variações bastante simples de um logotipo contendo a sigla “DC” em letra serifada (ora em silhueta, ora preenchida) envolta por duas circunferências concêntricas, numa forma reminiscente de um carimbo ou de um selo. A sigla era complementada por inscrições que, lidas em sequência, indicavam expressões como “A DC Publication”, “A Superman Publication” (em referência ao personagem mais conhecido da editora) e “Superman — DC — National Comics” (em referência ao antigo título da empresa).

As letras que orbitam a sigla “DC” lembram aquelas obtidas em normógrafos (aparelho de letreiramento técnico certamente utilizado em alguma etapa do processo gráfico de produção dos quadrinhos). Também lembram a própria caligrafia produzida pelos letristas das histórias em quadrinhos. A sigla central parece ter sido desenhada em vez de tipografada, mas lembra tipos como a Cooper Black (de 1922) e a Windsor (do século XIX), ambos de forte apelo publicitário. Nos três casos a largura da faixa periférica é cerca de um terço do diâmetro da circunferência interna.
Trata-se evidentemente de uma marca simples, produzida de forma talvez improvisada e não integrada a um projeto mais amplo de identidade visual corporativa (algo que, é claro, só passaria a fazer parte do cotidiano corporativo a partir dos anos 1950 e 60). Apesar disso, trata-se de uma forma que certamente serviria de base para os redesenhos posteriores (entre os quais o do próprio Glaser).

No início dos anos 1970 estes selos foram substituídos por marcas adaptadas para cada publicação: em cada uma delas a sigla “DC” era acompanhada da identidade visual do personagem ou temática relacionados à respectiva revista.
sigla “DC” chanfrada
Em meados dos anos 1970 a empresa substituiu a marca personalizada para cada uma de suas publicações por um novo desenho, recuperando a estrutura formada pela sigla “DC” envolta por uma circunferência de fundo branco, como em um carimbo ou selo. Eventualmente o desenho foi complementado pela inscrição “The Line of Super Stars” e por duas estrelas.

O logotipo lembra aquelas tipografias típicas de times esportivos universitários ou de ambientes militares — o que é reforçado pelo esquema cromático que faz referência direta ao da bandeira estadunidense. O desenho geométrico da sigla “DC” também é algo reminiscente de estratégias gráficas como estêncil e similares, reforçando o aspecto militar e ufanista.
o “DC bullet” de milton glaser
Após tantas reformulações, em 1976, foi enfim solicitado ao designer Milton Glaser que redesenhasse a marca da empresa a fim de consolidar sua imagem e identidade. O logotipo resultante foi, de forma bastante evidente, a melhor interpretação a que Glaser poderia chegar dos elementos e referências visuais de vários dos desenhos anteriores.

Dos logotipos geométricos mais recentes Glaser aproveitou e refinou o desenho da sigla DC. Das primeiras marcas reminescentes de selos e carimbos Glaser aproveitou a estrutura de circunferências concêntricas partindo da sigla “DC”. A proporção da largura da faixa externa em relação ao círculo interno, no entanto, mudou (de cerca de um terço para cerca da metade), tornando o desenho geral mais compacto e com maior destaque para a sigla. A faixa externa ganha preenchimento com a mesma cor da sigla central e quatro estrelas. Todo o conjunto, finalmente, ganha rotação de cerca de 35 graus, o que reforça a referência a um selo ou carimbo inserido num material de base (como a capa de uma revista).
As primeiras revistas com a nova identidade foram publicadas no fim de 1976, com datas de capa de fevereiro de 1977. Por um lado, a referência ao mundo militar e ao ufanismo estadunidense fica ainda mais nítida — sobretudo numa década marcada por uma intensa desconfiança popular das instituições norte-americanas em função de episódios como o caso Watergate e a Guerra do Vietnã. Por outro, o ar orgulhosamente brega e kitsch dessa identidade renovada acaba, talvez, reiterando o caráter dessacralizado e igualmente cafona desse ufanismo, agora plenamente incorporado à cultura de massas. O desenho — apesar de parecer datado hoje — tem uma rara qualidade de perenidade: é como se ele estivesse sempre associado a tudo o que a empresa já produzira, antes ou depois de sua implantação.

A dicotomia entre o ufanismo e a sua crítica inclusive marcou os quadrinhos produzidos pela editora nesse período: da curiosa homenagem ao flower power feita nos quadrinhos do Quarto mundo de Jack Kirby no início da década aos temas sociais levemente problematizados ao longo das histórias apresentadas no gibi Green Lantern/Green Arrow, passando por questões como discriminação racial — como quando Lois Lane procurou viver na pele o racismo sofrido pela população negra. Obviamente, em paralelo a esses momentos excepcionais aparentemente mais progressistas, as crianças e adolescentes que nos anos 1970 liam as histórias da editora ainda conviviam com personagens ufanistas e defensores do american way of life: a nova marca desenhada por Milton Glaser acabava servindo bem a ambas as situações.
o swoosh dos anos 2000
“Swoosh” é o apelido do símbolo curvilíneo desenhado por Carolyn Davidson em 1971 que, desde então, integra a marca da Nike e acompanha seu logotipo.
Muitos acreditam que foi a popularidade desse desenho que influenciou, ao longo das décadas seguintes e sobretudo nos anos 1990 e 2000, uma avalanche de símbolos e logotipos com formas similares. O desenho original, imediatamente associado à ideia de movimento e de rapidez em função de sua estrutura, pode lembrar ao mesmo tempo o rastro ou percurso de uma corrida — o que faz sentido, já que se trata de uma marca esportiva — ou uma asa (em referência à personagem Niké da mitologia grega). A torrente de imitações surgidas nas décadas seguintes, contudo, pareciam desejar apenas aproveitar a sensação de dinamismo causada pelo uso de elipses e curvas similares aplicando-as a marcas de todo tipo. O “Swoosh” virou hoje, na prática, uma categoria inteira para logotipos e símbolos genéricos.

A febre por elipses e por movimento parece ter também atingido a DC Comics nos anos 2000: em 2005 a editora encomendou uma nova marca para a empresa Brainchild Studios, resultando no desenho que ficou conhecido como DC spin. Este novo desenho é nitidamente mais infantil, mas ainda faz questão de aproveitar ou referenciar elementos consolidados nos desenhos anteriores, como as áreas estreitas entre as hastes verticais das letras “D” e “C” e a estrela presente no DC bullet. Pode-se argumentar que se trata de uma rotação, em perspectiva, das circunferências que orbitavam a sigla “DC” dos desenhos anteriores — agora se transformando num anel adornado pela estrela —, mas tudo indica mesmo ser apenas o desejo de copiar a moda dos símbolos curvilíneos ou elípticos que dominou o período.
Curiosamente, esta nova marca foi anunciada não muito tempo depois da publicação de uma série oportunamente intitulada Crise de identidade. Creio que muitos concordarão que é a pior marca de toda a história da editora.
página virada
Em 2011 a linha de quadrinhos da DC Comics foi inteiramente reformulada, em iniciativa editorial que ficou conhecida como os “Novos 52”: todas as dezenas de publicações mensais foram canceladas, sendo 52 delas republicadas abandonando a numeração antiga. Poucos anos antes a companhia também havia se transformado em “DC Entertainment”, reforçando o foco em outras mídias (como cinema e TV) em complemento às histórias em quadrinhos. A fim de consolidar a nova identidade corporativa, uma nova identidade visual foi encomendada à empresa de consultoria de marcas Landor.
O efeito visual da página virada (ou descolada) em forma de “D” revelando o “C” atrás dela é um tanto quanto infame, talvez até grosseiro. Contudo, a composição parecia se adaptar bem a aplicações variadas nos mais variados suportes (em publicações impressas e digitais, no cinema e na televisão, etc). Inclusive, assim que foi anunciado o novo desenho, o site Brad New (especializado em comentar propostas de redesenho de identidades visuais) havia criticado as escolhas de projeto e as soluções apresentadas. Pouco depois, contudo, o mesmo reconhecera a versatilidade da solução.
Apesar de todos os esforços direcionados à mudança de identidade, contudo, a nova marca durou apenas quatro anos, sendo associada a um momento problemático da empresa: o desempenho de suas propriedades intelectuais no cinema revelou-se muito aquém do esperado e, nos quadrinhos, a iniciativa “Novos 52” foi razoavelmente polêmica entre os leitores.
de volta à fase pré-milton glaser
Em 2016 ocorreu uma nova reformulação da linha editorial da empresa, similar aos “Novos 52”, intitulada Rebirth (Renascimento). Para acompanhá-la, bem como para reforçar um novo posicionamento corporativo ancorado num discurso do tipo “de volta às raízes”, a DC Entertainment encomendou um novo desenho de marca ao célebre estúdio Pentagram — cujos sócios incluem nomes influentes no design gráfico estadunidense, como Paula Scher e Michael Bierut.
O projeto do Pentagram parece buscar se constituir de uma alternativa ao desenho de Milton Glaser: também se utiliza dos principais elementos dos logotipos anteriores em um desenho novo, com pretensão contemporânea. Retoma a estrutura de selo/carimbo, com a sigla “DC” envolta por uma circunferência, bem como consolida a cor azul como referência cromática principal na identidade corporativa. O desenho das letras no logotipo “DC”, contudo, soa esquisito — a brincadeira com as semi-serifas quase parecem uma desculpa, como quem diz que fez mais do que simplesmente recuperar os logotipos do início dos anos 1970. Os adornos pontiagudos até lembram as formas exageradas dos trajes e equipamentos de super-heróis, mas de um modo não explícito, um tanto quanto envergonhado: o desenho de Glaser era orgulhosamente cafona, este não sabe se quer ser cultura popular de massas ou cultura sofisticada.
Se o desenho de Glaser parece hoje datado, o desenho do Pentagram, contudo — ainda que minimamente mais limpo e conciso — parece simplesmente… feio.