Faz pouco menos de dez anos que foi ao ar pela primeira vez o episódio “15 milhões de méritos” da celebrada série britânica Black Mirror, ainda em sua primeira temporada. Exibido em 11 de dezembro de 2011, trata-se até hoje, entre todos os episódios do programa, daquele que mais parece, à primeira vista, se afastar de nossa realidade cotidiana: o episódio retrata uma espécie de cenário distópico — na tradição de obras como 1984 ou Admirável mundo novo — em que castas sociais distintas estão inevitavelmente vinculadas a determinados papéis no mundo produtivo, no interior de uma megaestrutura da qual, ao que tudo indica, não podem fugir.
Apesar disso, também se trata de um dos episódios mais “literais” de Black Mirror, se levarmos em conta as metáforas nem um pouco sutis a respeito de nossa própria realidade social, política e econômica. Não fosse a boa produção do episódio, as evidentes menções à teoria do valor-trabalho, à sociedade do espetáculo, ao papel da ideologia no rebaixamento e desumanização de trabalhadores de castas inferiores, à cultura do corpo sadio, entre outros aspectos da trama, pareceriam forçadas ou amadoras demais.
Mesmo com as metáforas excessivamente literais e pouco sutis, ainda é meu episódio preferido de toda a série. Em um dado momento, os protagonistas aparecem em uma caricatura de programas de televisão como American Idol ou Britain’s Got Talent. Em vez de uma plateia “real”, contudo, o público presente no auditório do programa é composto por avatares digitais de seus espectadores. À época em que o episódio foi ao ar tal artifício provavelmente parecera um exagero gracioso.
Mal sabíamos que dez anos depois a Apple — uma das maiores responsáveis por termos todos mergulhado tão intensamente nesses espelhos negros nos últimos dez anos — repetiria a mesma cena em seu igualmente espetacular show anual de revelação de novos produtos de software.
Dez anos atrás talvez achássemos exagerada a infantilização dos avatares na plateia do fictício programa de talentos retratado em Black Mirror. Parecia mais uma entre as metáforas forçosas demais: uma em que, nesse mundo cada vez mais digital, seríamos todos tratados como crianças — ou algo do tipo.
Dez anos depois, a Apple não só repete a mesma operação como revela uma plateia não só mais infantilizada como muito mais perfeitamente produzida de forma infantilizada.
Há quem não veja a hora de poder assistir a um novo episódio de Black Mirror. Pelo visto não há porque esperar: basta sintonizar no canal de eventos da Apple no YouTube.