Há muitos documentos, objetos e depoimentos interessantes expostos na Ocupação Paulo Freire, atualmente em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo. Um deles, no entanto, me tocou em particular.
Trata-se de uma portaria do Ministério da Educação e da Cultura datada de 16 de março de 1964 — ou seja, nos últimos dias do governo João Goulart, que, como sabemos seria alvo de um golpe por militares e empresários dali a duas semanas. Por meio dela, ficava não só instituída a Coordenação Nacional do Programa Nacional de Alfabetização como era designado o educador Paulo Freire para a sua direção nacional.
No ano anterior ocorreu a famosa “experiência de Angicos”, pela qual uma equipe liderada por Paulo Freire promovera, em menos de dois meses, a alfabetização de cerca de 300 adultos. A proposta de educação freireana, como pensada e praticada em Angicos, formaria a base de um programa de alfabetização instituído já em janeiro de 1964 — pelo qual se previa um rigoroso e sério combate ao analfabetismo em todo o território nacional.
Naqueles anos o voto era proibido aos analfabetos — mais de um terço da população adulta brasileira, contudo, era analfabeta e, portanto, proibida de exercer o direito mais elementar das democracias liberais. Uma inédita aceleração nas taxas de alfabetização levaria à incorporação de uma enorme massa populacional — predominantemente pobre e negra — à condição de eleitora. Tratava-se, é claro, de uma parcela de eleitores que poderia alterar de forma irreversível o status quo eleitoral.
Tal afronta às posições de monopólio de poder de nossas velhas elites revelou-se, é claro, inaceitável. Como sabemos, tropas mobilizadas no dia 31 de março promoveriam a queda do governo legítimo de João Goulart no dia 1º de abril — dia da mentira.
O documento exposto na Ocupação — aquele contendo a portaria do dia 16 de março que apontava Paulo Freire como coordenador nacional de alfabetização —, indica também a data de sua publicação no Diário Oficial: o mesmo 1º de abril de 1964. É significativo que a data escolhida por empresários e militares para derrubarem a democracia brasileira e instaurarem aquele regime de ódio e violência que duraria 21 anos tenha sido justamente o dia em que Freire iniciaria seu projeto de alfabetização do país.
Tal designação foi provavelmente tornada sem efeito dias depois. Paulo Freire se viu obrigado a se exilar no Chile — onde escreveria sua obra mais célebre, Pedagogia do Oprimido, que viria a ser publicada no Brasil apenas vários anos depois. Paulo Freire, talvez o único brasileiro entre os autores mais todos do mundo, só retornaria ao país em 1980.