adeus, anticast

Pouco menos de dez anos atrás passei por um breve período sem internet em casa, por razões diversas. Eu estava recém-formado e recém-empossado no trabalho que mantenho até hoje, bem como eu e minha querida companheira havíamos acabado de nos mudar para um apartamento novo. Era época de mudanças. À época não havia 4G e o 3G no celular era bastante limitado — ainda sequer tínhamos Netflix em casa. Aproveitando uma visita à casa dos pais, baixei de uma vez dezenas de episódios de podcasts no laptop para ouvir em casa enquanto a internet não voltava.

o anticast

Entre os episódios baixados, encontravam-se alguns de um misterioso programa sobre design chamado Anticast, então hospedado no B9, portal de conteúdo que à época eu associava quase exclusivamente ao mundo da publicidade. Ouvi aqueles episódios e a primeira reação foi de incômodo: naquele momento, eles soavam liberais demais. Apesar disso, o conteúdo era bom, os apresentadores eram carismáticos e a interação entre eles era agradável. Continuei ouvindo e em pouco tempo, apesar das discordâncias, o Anticast se tornou meu podcast preferido — a tal ponto que aderi precocemente ao programa de apadrinhamento lançado poucos anos depois. Com o tempo o programa foi ficando menos liberal — a tal ponto dele ser considerado até excessivamente esquerdista em alguns meios — e eu fui ficando menos sectário.

Ao longo de dez anos o programa mudou muito: deixou de falar exclusivamente sobre design para abordar temas culturais, sociais e políticos mais amplos. Ivan Mizanzuk, Marcos Beccari e Rafael Ancara — e, mais recentemente, Giselle Camargo — abordavam temas relevantes sempre de forma interessada e interessante. Mizanzuk, durante vários anos o principal nome por trás do programa, foi responsável por outras iniciativas memoráveis, como o célebre Caso Evandro e o Projeto Humanos. Esses são os feitos amplamente conhecidos ligados ao Anticast.

Para mim, contudo, o programa está associado não só a agradáveis memórias como a importantes momentos de descoberta e redescoberta: junto com o podcast eu me aproximava de novas referências acadêmicas, culturais, políticas, intelectuais. Semiótica, teoria crítica, estudos de gênero, feminismo, história do design, história da arte, marxismo, ficção científica, fenomenologia, filosofia trágica, pedagogia da escolha… são inúmeros os temas com os quais me aproximei e me reaproximei por conta do Anticast. Conheci o trabalho de dezenas de novos artistas, intelectuais, ativistas e militantes que me impactaram profundamente em vários momentos: China Mieville, Rogério de Almeida, Vilém Flusser, João Carvalho, Black Mirror, Sabrina Fernandes, Lady Sybylla, Isabel Wittman, Zamiliano, Ricardo Cunha Lima, Almir Mirabeau, Viracasacas, Lado B do Rio, entre muitos outros.

Para além disso, o Anticast cumpriu importante papel ao tocar em feridas e em colaborar em causas relevantes e necessárias. O antológico Anticast 198 foi fundamental para expor a cultura misógina e as práticas machistas recorrentes em veículos da cultura pop nacional e até hoje é lembrado como um divisor de águas.

Do Anticast também surgiram outros podcasts fundamentais para a “podosfera” brasileira — por influência direta ou indireta e em função de encontros casuais ou intencionais entre seus convidados, ouvintes e outros vários personagens que passaram pelo programa. São vários os programas direta ou indiretamente influenciados pelo Anticast: Lado Black, É pau é pedra, Pistolando, Intervalo de confiança, Revolushow, HQ da vida, Frequências abertas, entre outros — assim como os filhos diretos do Anticast, o Visual+Mente e o Não obstante.

Minha própria participação no Fora de prumo, em alguma medida, surge do desejo — consciente ou inconsciente — de tentar replicar no mundo dos estudos de arquitetura o que o Anticast conseguir atingir ao falar sobre design.

adeus

O “trio Anticast” original deixou o programa já há alguns anos e desde então ele vinha sendo conduzido com profissionalismo, profundidade, empenho e rigor pela jornalista Giselle Camargo. Hoje, 1º de setembro, fomos comunicados da decisão de suspender a realização do programa. O competente trabalho desenvolvido por Giselle Camargo definitivamente não merecia o ataque de ódio que ela sofrera recentemente nas redes sociais.

Não temo em errar ao afirmar que o Anticast talvez tenha sido o mais importante podcast produzido no Brasil na última década. O programa deixará saudades, assim como o competente e alegre trabalho desenvolvido por Giselle Camargo, Ivan Mizanzuk e por todos os demais.

Talvez seja sintomático que um podcast tão bom, tão responsável e tão rigoroso termine justamente num momento em que somos sufocados por podcasts irresponsáveis, medíocres e até mesmo criminosos — como aqueles onde há apologia explícita ao nazismo e cujo nome não vale a pena perder tempo mencionando.

Ao Anticast, à Giselle Camargo, ao Ivan Mizanzuk e a todos os demais: meu sincero muito obrigado.


Em meio à tristeza pelo fim do programa, cabe talvez já pensar em iniciativas de preservação digital desse acervo fundamental da cultura brasileira dos anos 2010. É fundamental preservar os programas do Anticast em um local seguro como o Internet Archive. Além de um referencial para tantas memórias de tantas pessoas que foram afetadas pelo programa, trata-se também de uma fonte riquíssima e privilegiada para documentar e pesar essa década tão estranha.

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