algumas palavras sobre patrimônio cultural (parte 2)

Continuo aqui o registro de algumas anotações sobre as representações e as práticas associadas à ideia de patrimônio cultural. Como já alertei na parte 1 (a palavra “patrimônio”), não se trata de uma discussão acadêmica nem de um texto com qualquer pretensão científica, mas apenas de um conjunto de comentários descompromissados sobre o tema.

A série continua em ainda mais uma postagem, conforme o sumário a seguir:

  1. a palavra “patrimônio”
  2. materialidade e intangibilidade no patrimônio (nesta página)
  3. transformações de sentido do conceito e suas contraditoriedades (a ser publicado)

2. materialidade e intangibilidade no patrimônio

A partir das últimas anotações, circunscrevemos um vocabulário tradicionalmente associado ao campo do patrimônio: norma, herança, valor, bem. “Bem” e “valor”, particularmente, constituem o núcleo aparentemente mais relevante do campo discursivo relacionado ao patrimônio cultural, ao redor do qual se depreendem outros sentidos e significados. Percebemos ainda como este campo se trata de algo a que se associam fortemente as ideias de estabilidade, de isolamento, de reificação e até mesmo de congelamento. Segundo este arranjo discursivo, portanto, já que se trata de um bem, de um valor, aquilo que se entende como herança, como patrimônio deve ser resguardado em sua estabilidade, deve ser protegido, preservado — isolado, se possível, da vida social a que estava integrado, reificando-se e fetichizando-se. Se é para ser preservado, é tomado enquanto um corpo sólido, coeso, isolado — mais uma vez, reificado. Aquilo que se entende por patrimônio, portanto, confunde-se com ou se reduz à sua expressão material. A fim de que um valor seja reconhecido como tal, é necessário inventariá-lo. O inventário, como se sabe, é um procedimento técnico já naturalizado no campo profissional do patrimônio: surpreende, contudo, a naturalização e o mascaramento de sua origem essencialmente econômica (inventário como registro acumulado de bens e valores de um determinado proprietário). Em inglês, aliás, usa-se explicitamente a palavra “cultural property” para se referir ao patrimônio cultural. Toda esta necessidade de estabilidade, norma, reificação, depende da objetificação do patrimônio e de sua identificação como coisa isolada, como objeto, como matéria.

De fato, existe uma disciplina autônoma que lida essencialmente com o caráter material do patrimônio: trata-se da preservação (ou da conservação e restauro). Como campo disciplinar autônomo, reúne suas questões próprias, bem como uma ampla e avançada bibliografia específica. É sobre este campo particular, ainda, que costumam incidir mais fortemente os marcos legais e os acordos internacionais relacionados ao patrimônio cultural, como as famosas cartas patrimoniais. Não é propriamente sobre isto, porém, que pretendo falar, embora seja importante ressaltar que não é infrequente que se confunda esta disciplina autônoma com o campo do patrimônio como um todo: muitas vezes fala-se dos problemas da preservação como uma maneira de solucionar os problemas ligados ao patrimônio cultural de forma mais ampla, reduzindo este fenômeno às questões teóricas e práticas relacionadas à sua preservação. Isto acaba por contribuir, infelizmente, a certa abordagem excessivamente tecnocrática dos problemas do patrimônio, pois a cultura própria e a visão de mundo dos profissionais de conservação e restauro acaba por se sobrepor àquela de todos os demais agentes envolvidos na produção e circulação do patrimônio.

cesare brandi
Cesare Brandi. Fonte: http://www.docart900.memofonte.it/

O problema da materialidade se encontra justamente na redução do fenômeno patrimonial a esta sua dimensão particular. Na medida em que se limita o entendimento de um bem patrimonial a suas características materiais, incorre-se fatalmente à constituição, ainda que implícita, de uma narrativa específica a respeito dele. Um mesmo significante apresenta virtualmente infinitos significados, como se sabe, mas uma vez que se considere um determinado objeto patrimônio a partir apenas de suas características materiais, já se enquadra e se consolida logo de cara uma única leitura específica deste objeto. O risco de se produzir uma abordagem não muito distante daquilo que Paulo Freire entendia por invasão cultural é grande, se não for inescapável.

A representação da dimensão material do patrimônio como a protagonista de sua condição de herança praticamente acompanhou toda a trajetória do conceito, desde suas origens pós-Revolução Francesa até os dias atuais. Está tanto no famoso Decreto-Lei 25 assim como na maior parte das instruções de tombamento de monumentos atuais.

Num certo momento (e, em alguma medida, até hoje para determinados casos), construía-se uma narrativa sobre os objetos ou bens dotados de sentido patrimonial tendo como perspectiva a valorização ou a celebração de uma leitura específica da matéria da obra, alimentada por uma visão de mundo igualmente específica. O resultado, claro, é arbitrário e normalmente sujeito às condicionantes ideológicas em voga a cada momento. Invariavelmente, contudo, a construção de tal narrativa envolve um discurso razoavelmente cientificizado, de modo a ser legitimado por meio de argumentação (supostamente) objetiva e baseada em critérios, em princípio, técnicos. Mais uma vez, está claro de que se trata de abordagem tão arbitrária quanto qualquer outra. Esta, porém, é particularmente legitimada pelo notório saber associado aos usuais portadores de tais discursos.

Este primeiro momento da prática da preservação do patrimônio — que o vê, essencialmente, como documento — acaba por constituir e legitimar (e usar, por sua vez, para futuros processos de legitimação decorrentes) um sistema próprio e socialmente reconhecido de proteção do patrimônio, baseado no suposto notório saber de intelectuais e técnicos que atuam na inventariação e proteção de determinados referenciais materiais a que será atribuída a representação da memória (de um grupo, da nação, etc).

Não é, no entanto, propriamente sobre este problema da relação entre a institucionalização do patrimônio e o universo da ideologia e do poder que pretendo falar aqui. Gostaria de atentar para a fragilidade inerente de tal discurso — que associa o patrimônio à “matéria da obra” acriticamente, confundindo a memória com seus vetores ou utilizando-a para sacralizar uma determinada narrativa ou uma determinada perspectiva sobre o mundo e levando por vezes ao problema da invasão cultural — apontando evidentes contraditoriedades práticas nele.

reconstrução periódica de templos xintoístas

O exemplo que gosto de citar é justamente aquele que normalmente é posicionado fora do campo da preservação pois entende-se que ele não lida exatamente com a dimensão material de que se falava acima. Trata-se, no entanto, de uma manifestação que está inegavelmente associada à ideia de patrimônio, visto que se constitui de uma prática cultural e social que tem na noção de legado e de proteção de uma tradição para as gerações futuras um aspecto central. Falamos aqui da reconstrução periódica do Grande Templo de Ise, no Japão — prática de forte caráter ritualístico associado à doutrina xintoísta.

Templo de Ise em 1953
Reconstrução do templo nos anos 1950. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ise_Shrine_Naiku_1953-8-26.jpg

Nara, antiga capital do Japão, é conhecida pelos templos xintoístas cujos sucessivos ciclos de destruição e reconstrução cessaram no século XIX. Tais templos, desde então, estão submetidos a uma lógica conservacionista não diversa da usual no Ocidente. O Grande Templo de Ise, contudo, é continuamente destruído e reconstruído pela comunidade que o mantém a cada 20 anos. A imagem acima ilustra o ciclo de reconstrução ocorrido nos anos 1950. Agora em 2013 um novo ciclo é concluído com a destruição total do templo de 1993 e a conclusão da construção de um novo (iniciado em 2007).

A lógica ocidental tenderia a considerar sucessivas reconstruções como indicadoras de um objeto não dotado de valores suficientes que o tornem um bem patrimonial. Trata-se de algo que, em princípio, não apresenta qualquer aura, pois tenderia a se situar na esfera da clonagem ou da replicação de uma matéria. A perda de originalidade material indicaria a impossibilidade de situar tais objetos no campo do patrimônio, já qua nada haveria a ser de fato preservado para gerações futuras. Considera-se, portanto, que templos como o de Ise simplesmente não sejam um problema de patrimônio cultural.

Esta parece, contudo, ser uma visão restrita do fenômeno, impedindo uma abordagem com implicações mais ricas. A reconstrução cíclica e ritual do Templo se revela, de fato, uma prática social dotada de uma teia de significados profundamente associada à vida naquele lugar: mais do que um ritual religioso, trata-se de um evento que dota de sentido a própria existência dos sujeitos nele envolvidos.

A lógica ocidental talvez tratasse, então, de situar tal prática no campo do assim chamado “patrimônio imaterial”. É impossível, porém, achar que é possível limitar tão rica prática material à esfera da “imaterialidade”: é no trabalho com a madeira, no trato do ornamento, no contato direto com os elementos que dão identidade material àquele ritual em que toda esta prática ganha sentido. Na mesma medida, no período de 20 anos em que o Templo permanece em uma de suas incarnações, não é em sua “imaterialidade” que ele é celebrado, mas enquanto concretude representativa de uma crença e de uma doutrina. Tentar enquadrar tal prática em categorias tão artificiais e arbitrárias quanto estas do “patrimônio material” ou “imaterial” revela-se no mínimo falho.

Afinal, é de cultura que se está falanda: cultura não se preserva, pois ela está sujeita aos sentidos e significados fluídos e mutantes que são construídos e tecidos nela, por ela e para ela. Daí a falácia inerente ao discurso patrimonialista/preservacionista ocidental: confunde-se a preservação de um vetor de significados culturais ou de memória (um objeto), com a preservação da cultura ou da memória a ele associados. Tanto a cultura quanto a memória são construções sociais flexíveis e mutáveis: é ilusório, para dizer o mínimo, achar que a preservação de um objeto será suficiente para preservar a cultura a ele associado. Quando muito, preservará apenas a possibilidade de uma narrativa única (que fatalmente passará a ser identificada como datada e arbitrária) e a celebração de uma postura ideológica específica.

A cada 20 anos a reconstrução celebra a passagem do tempo e da memória. É por meio do ato destrutivo que a memória é construída, não por meio da preservação de seu vetor. Um sujeito que hoje tem 60 anos viu a reconstrução pelo menos duas vezes em sua vida: a reconstrução de hoje ajudará a construir sua memória e a memória do grupo que integra. Constituirá a identidade do grupo em tudo que ela tem de necessariamente conflituoso, ambíguo, imprevisível. A cópia de hoje é a origem de amanhã: o sujeito de 60 anos viveu pela primeira vez a construção com então 20 anos, participou novamente aos 40, ensinando o filho, e ensinará hoje seu neto de 20 anos a reconstruir o templo, o qual ensinará o filho daqui a vinte anos. O fenômeno desafia nosso desejo de autenticidade e originalidade: as cópias são tendem a ser perfeitas, mas é impossível que sejam clones totalmente fiéis. No entanto, marcam a eternidade de uma construção efêmera.

Se isto não é patrimônio, herança, cultura, não posso saber mais o que é.

o mito do valor imanente à matéria

A reconstrução periódica dos templos xintoístas constitui, inegavelmente, uma prática a ser entendida como patrimônio cultural de um grupo social, pois ela envolve sentidos, identidades, conflitos e disputas de significações sobre objetos, práticas e representações que envolvem a tentativa de constituir heranças às gerações futuras. Provoca-nos a pensar nos sentidos atribuídos à matéria dita “bem cultural”: é a matéria que possui valores inerentes a ela? Não por acaso o Templo eterno (apesar de sempre efêmero) de Ise já foi chamado de “antídoto da Unesco” — já que a organização internacional tende a categorizar e burocratizar tudo o que se refere a patrimônio. O edifício existe de fato há séculos (o que o tornaria próprio a figurar na lista do patrimônio mundial da Unesco), mas os edifícios reconstruídos a cada 20 anos desafiam o olhar limitado dos técnicos ocidentais de patrimônio, os quais os desqualificam, na medida em que não compreendem que uma prática social associada a uma matéria constitua patrimônio cultural.

Patrimônio cultural lida necessariamente com o estabelecimento de uma relação complexa entre materialidade e imaterialidade: a matéria sozinha diz nada, mas é ela que serve de vetor de representações e práticas sociais. São estas práticas e representações que dotam a matéria de sua condição patrimonial. Na medida em que sejam pertencentes à esfera da cultura, visto que são produzidas por sujeitos em movimento e não por providência extra-humana, tais práticas e representações são necessariamente flexíveis e mutáveis ao longo do tempo e à medida em que os sujeitos mudam. A sacralização de uma narrativa única sobre a matéria gera a impossibilidade de dar continuidade à existência da cultura a ela associada: o ato de tombamento, portanto, quando guiado por valores supostamente imanentes ou intrínsecos à matéria, nada mais é que um ato de destruição da cultura. Como lembra o prof. Ulpiano Meneses eu seu clássico texto “História, cativa da memória”: toda reificação é esquecimento.

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