Alguns comentários de Jacques Rancière sobre a relação entre história, ficção e narrativa, bem como sobre os eventuais equívocos tomados desta relação.
A revolução estética redistribui o jogo tornando solidárias duas coisas: a indefinição das fronteiras entra a razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo de racionalidade da ciência histórica. Declarando que o princípio da poesia não é a ficção, mas um determinado arranjo dos signos da linguagem, a idade romântica torna indefinida a linha divisória que isolava a arte da jurisdição dos enunciados ou das imagens, bem como aquela que separava a razão dos fatos e a razão das histórias. Não que ela tenha, como se diz às vezes, consagrado o “autotelismo” da linguagem, separada da realidade. Muito pelo contrário. A idade romântica força de fato a linguagem a penetrar na materialidade dos traços através dos quais o mundo histórico e social se torna visível a si mesmo, ainda que sob a forma de linguagem muda das coisas e da linguagem cifrada das imagens. É a circulação nessa paisagem de signos que define a nova ficcionalidade: a nova maneira de contar histórias, que é, antes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao universo “empírico” das ações obscuras e dos objetos banais. A ordenação ficcional deixa de ser o encadeamento causal aristotélico das ações “segundo a necessidade e a verossimilhança.” Torna-se uma ordenação de signos. […]
Assim se encontra revogada a linha divisória aristotélica entre duas “histórias” — a dos historiadores e a dos poetas —, a qual não separava somente a realidade e a ficção, mas também a sucessão empírica e a necessidade construída. […] A “história” poética, desde então, articula o realismo que nos mostra os rastros poéticos inscritos na realidade mesma e o artificialismo que monta máquinas de compreensão complexas.
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O real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa proposição deve ser distinguida de todo o discurso — positivo ou negativo — segundo o qual tudo seria “narrativa”, com alternâncias entre as “grandes” e “pequenas” narrativas. A noção de “narrativa” nos aprisiona nas oposições do real e do artifício em que se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas. Em compensação, é claro que um modelo de fabricação de histórias está ligado a uma determinada ideia da história como destino comum, com uma ideia daqueles que “fazem história”, e que essa interpenetração entre razão dos fatos e razão das histórias é própria de uma época em que qualquer um é considerado como cooperando com a tarefa de “fazer” a história. Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas das histórias que nós contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009, pp. 54–59.