Alguns comentários sobre a invenção da memória e da história em Jamais fomos modernos:
De onde nos vem a ideia de um tempo que passa? Da própria Constituição moderna. A antropologia está aí para nos lembrar que a passagem do tempo pode ser interpretada de diversas formas, como ciclo ou como decadência, como queda ou como instabilidade, como retorno ou como presença continuada. Chamemos de temporalidade a interpretação dessa passagem, de forma a distingui-la claramente do tempo. Os modernos têm a particularidade de compreender o tempo que passa como se realmente abolisse o passado antes dele. […]
[…] Como Nietzche havia observado, os modernos têm a doença da história. Querem guardar tudo, datar tudo, porque pensam ter rompido definitivamente com seu passado. Quanto mais revoluções eles acumulam, mais eles conservam; quanto mais capitalizam, mais colocam no museu. A destruição maníaca é paga simetricamente por uma conservação também maníaca. Os historiadores reconstituem o passado nos mínimos detalhes com um cuidado muito maior, pois este se perdeu para sempre. Estaremos realmente tão distantes do nosso passado quanto desejamos crer? Não, já que a temporalidade moderna não tem muito efeito sobre a passagem do tempo. O passado permanece, ou mesmo retorna. E esta ressurgência é incompreensível para os modernos. Tratam-na então como um retorno do que foi recalcado. Fazem dela um arcaísmo.
Se existe algo que somos incapazes de fazer, podemos vê-lo agora, é uma revolução, quer seja na ciência, na técnica, em política ou filosofia. Mas ainda somos modernos quando interpretamos este fato como uma decepção, como se o arcaísmo houvesse invadido tudo, como se não existisse mais um depósito de lixo onde fosse possível empilhar o que foi recalcado. Ainda somos pós-modernos quando tentamos ultrapassar essa decepção através da justaposição, por colagem de elementos de todos os tempos, todos igualmente ultrapassados, fora de moda.
LATOUR, Bruno. [1991] Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora, 34, 2013, pp. 67–69