Dia desses me dei conta de uma obviedade — mas uma obviedade daquelas de que, de tão introjetadas no cotidiano, nos esquecemos facilmente.
Trata-se do seguinte fato: empresas de transmissão de filmes, séries e música sob demanda (“streaming”) reúnem um conjunto significativo de dados sobre as nossas vidas particulares. Corporações como Amazon, Apple, Disney, Google, Netflix, Spotify, entre outras, sabem exatamente quando começamos a assistir ou a ouvir algo, quando pausamos, quando interrompemos, quantas vezes pausamos, quais nossos horários preferidos para consumir tais produtos e como e onde fazemos isso — se em nossas TVs, computadores, celulares ou outros aparelhos. Não só sabem de nossas preferências de consumo cultural como sabem também, eventualmente, da imagem que queremos passar de nós mesmos pelo que consumimos. A depender do cruzamento de informações com outras bases de dados nas quais constam nossos IPs ou e-mails, é possível ainda levantar dossiês individuais sobre outros hábitos de consumo, níveis de renda, relações sociais, entre outros.
Temos plena consciência de todo esse conjunto de perversidades, ainda que o ignoremos no dia-a-dia. Contudo, a coisa fica um pouco mais assustadora quando nos damos conta de que um ato tão privado e doméstico quanto assistir a um filme em casa após o jantar de repente se transforma em um ato dotado de algum nível de publicidade: alguém — mesmo que esse alguém seja apenas um banco de dados — está nos vigiando e coletando os nossos dados desde o momento em que o aplicativo de streaming é ligado até o momento em que ele é interrompido — e no caso de telefones celulares, isto pode não acontecer nunca.
É como se nossas casas fossem feitas de vidro: atos íntimos tornam-se transparentes para alguém.
paredes transparentes
Casas de vidro lembram a cidade descrita no romance Nós, de Yevgeny Zamyatin, escrito na União Soviética em 1921. Trata-se de uma pioneira trama distópica na qual todas as construções são feitas de material transparente, num mundo em que papéis sociais e relações entre pessoas são decididos por meio de métodos cientificamente seguros obtidos pelo que parece ser uma inteligência artificial avançada — até mesmo as atividades mais íntimas, como as relações sexuais, são determinadas e agendadas por um sistema central. As metáforas são, evidentemente, caricatas e um tanto quanto literais demais, mas a imagem tensa de construções completamente transparentes é construída de uma forma bastante forte e interessante.
Obviamente, os dados que as empresas de streaming coletam a partir de nossos hábitos de consumo não são completamente públicos — mas acho que essa imagem da casa completamente transparente ajudaria as pessoas a ficarem mais assustadas com o nível de informações privadas que tais empresas reúnem sobre nós. No romance de Zamyatin o conjunto de construções transparentes resulta, obviamente, num grande panóptico em que todos se vigiam mutuamente — algo ainda não explorado em plataformas de streaming.
Contudo, não creio que demore muito para que aplicativos de plataformas de streaming comecem a apresentar características de redes sociais, como stories ou avisos de novos programas assistidos por amigos e familiares. Um pesadelo foucaultiano nada improvável.
piratear é garantir nossa privacidade
Dito isso, penso que garantir a existência de sítios de torrents como o clássico The Pirate Bay e de plataformas como Stremio ou Popcorn Time não diz respeito apenas a garantir acesso a materiais presos por trás das cercas dos latifúndios de saber que são os direitos ligados à propriedade intelectual. Isso, evidente, também é fundamental: não fossem as redes de compartilhamento de arquivos, muitos filmes, livros, discos e outros produtos culturais não mais disponíveis para comercialização não poderiam ser devidamente apreciados.
Práticas de pirataria, contudo, também se revelam fundamentais para que possamos apreciar tais produtos sem que uma empresa na Califórnia necessariamente colete cada um de nossos hábitos de consumo.
A pirataria se trata, em última instância, de proteger nossa privacidade: de voltar a tornar opacas as paredes de nossas casas.
É um outro argumento interessante para defender a pirataria. Eu na verdade defendo pois não acho justo que alguns tenham acesso a uma determinada serie, livro ou filme enquanto outros não tenham esse acesso.
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