Durante as trágicas eleições de 2018 surgiu um movimento nas redes sociais para que comparecêssemos ao dia da votação munidos não de armas — como queriam os apoiadores daquele sujeito desprezível que hoje usurpa o Planalto — mas de livros. Em princípio, juntei-me àqueles que consideravam esta sugestão pedante ou ingênua demais. Com a escalada de ataques por parte das falanges verde-e-amarelas a todos nós que simplesmente ousávamos pensar diferente daquela momentânea hegemonia de ares fascistóides, convenci-me de que valia a pena aderir a essa singela forma de protesto.
O livro que escolhi para me acompanhar às urnas foi Pedagogia da esperança, de Paulo Freire. Certamente menos conhecido que os demais livros do autor — sobretudo quando comparado a obras como Pedagogia do oprimido ou Pedagogia da autonomia — trata-se de uma espécie de autobiografia pela qual o educador revisita ao mesmo tempo trechos de sua vida e de sua trajetória intelectual e política.
Foi, por algum acaso qualquer, meu primeiro contato com o autor, em algum momento da graduação na segunda metade dos anos 2000. Neste livro Paulo Freire conta como, recém-formado advogado, recusou-se a participar de um processo de despejo de um jovem profissional que, vendo-se obrigado a tomar um empréstimo para poder trabalhar, viu-se de repente sem condições de devolver o dinheiro. Passou a trabalhar, então, como professor — algo que já fazia desde o período de faculdade.
Num outro episódio, Paulo Freire conta como, numa reunião com pais de alunos na escola do SESI em que trabalhava, foi surpreendido com o saber de classe daqueles sujeitos, em sua maioria operários.
(…) “Dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de um de nós?” Começou então a descrever a geografia precária de suas casas. A escassez de cômodos, os limites ínfimos dos espaços em que os corpos se acotovelam. Falou da falta de recursos para as mais mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor. Da proibição que lhes era imposta de ser felizes. De ter esperança.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 26.
É muito significativo para quem estuda arquiteturas, paisagens e cidades que tenha sido a perversidade inerente ao direito civil — e, em particular, à propriedade privada — que tenha levado Freire a desistir da advocacia para se dedicar à educação. E é significativo que tenha sido a lembrança dessa conversa sobre a casa com os pais dos alunos que o teria despertado para pensar na leitura do mundo como condição para a leitura da palavra. O papel que palavras como “tijolo” e “barraco” — ou as situações retratadas nas famosas ilustrações de Brennand — tiveram em seus círculos de cultura, como os da célebre experiência de Angicos, também diz muito para quem trabalha com o espaço vivido.
Paulo Freire foi fundamental em minha formação. Foi imprescindível para o meu trabalho. A leitura de sua obra foi fundamental para a definição de meu trabalho final de graduação. Em seguida, foi referência constante para vários de meus trabalhos. A forma como Freire fala da ideia de “invasão cultural” foi central para pensar uma abordagem crítica no trabalho com o patrimônio cultural.
Desde que entrei em contato com o autor, mais de dez anos atrás, conheci também diversas e relevantes críticas sobre suas ideias — sobretudo aquelas oriundas do campo do anarquismo e de abordagens de matriz foucaultiana. Ignorar tais críticas seria criticável pelo próprio Paulo Freire, caso estivesse vivo — na própria Pedagogia da esperança, por exemplo, ele fala como percebeu problemáticos seus textos usando sempre o masculino universal após ser criticado pelo movimento feminista. Incorporei várias dessas críticas, sem deixar de reconhecer sua relevância e, sobretudo, a importância que teve na minha trajetória.
Dez anos atrás falar em Paulo Freire no contexto de uma faculdade de arquitetura era algo restrito a determinados grupos e práticas — não se tratava, é claro, de uma referência inédita ou infrequente, mas não só ele estava longe dos espaços hegemônicos como ainda era mal visto neles. Passada uma década, contudo, felizmente já o vemos inserido em alguns desses círculos. Recebemos, por exemplo, com satisfação uma edição especial da revista Arquitextos, do portal Vitruvius, dedicada ao autor.
Vale retomar neste centenário um de seus trechos mais citados — a conclusão de sua Pedagogia da autonomia.
Estou convencido, porém, de que a rigorosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa arrogância. Não nego a competência, por outro lado, de arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria melhor. Gente mais gente.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 145–146