originalmente publicado em http://notasurbanas.blogsome.com/2009/06/13/minha-casa-minha-vida/
Já são várias as críticas feitas por diferentes setores da esquerda ao programa Minha casa, minha vida do governo federal. Em geral, alerta-se para os equívocos do programa que podem repetir (talvez intencionalmente) os erros de 1964 e a estratégia do BNH, conhecido por aplicar seus fundos sobretudo aos setores de média renda e em promover um violento processo de segregação sócioespacial nas cidades brasileiras.
Tomem-se, por exemplo, os seguintes linques: o artigo O “Minha Casa” é um avanço, mas segregação urbana fica intocada [Maricato] (texto que tem circulado bastante pelas caixas de e-mail) e esta matéria do Jornal do Campus.
O que é curioso é notar que já em 1969 alertava-se para o caráter segregador e violento da atuação do BNH. No clássico texto A produção da casa no Brasil (cujo título original era “A casa popular”) Sérgio Ferro constatava o seguinte, no seus parágrafos finais:
[…] a construção civil produz mais-valia excedente que vai alimentar outros setores. O problema do tempo de giro na construção civil, entretanto, está acarretando importantes modificações neste campo. Em primeiro lugar, a pressão nas obras públicas e privadas, sobre o prazo de construção, fator que vem progressivamente determinando as concorrências. Mas, para uma mesma produção, supondo-se a mesma qualidade, as possibilidades de eliminação dos “poros” durante o processo de trabalho são restritas. Daí a imediata consequência: é necessário diminuir a qualidade do produto para obter melhores prazos – já que a industrialização é sempre evitada. Ora, diminuir a qualidade é ampliar o mercado pela absorção de setores de pequeno poder aquisitivo, é absorver setores ainda marginalizados da classe média.
Por outro lado, outro modo de reduzir o tempo de giro é eliminar o que separa o fim da produção da realização do produto sob a forma de dinheiro. Até algum tempo atrás, a casa era somente vendida pronta. Depois começou a venda na planta, que permitia diminuir o capital próprio empregado. A seguir, os financiamentos dominaram: capital oficial, realização imediata do produto para o capitalista, as desvantagens da prestação transferidas para o governo. Ora, juntando baixa qualidade com financiamento caracterizamos a vaidade maior do poder atual: o BNH. Mas o governo também não quis ficar com as desvantagens do financiamento tradicional: e criou o sistema do BNH, uma das maiores explorações oficiais, que utiliza um fundo dos trabalhadores e terá, como vantagem suplementar a longo prazo, o rebaixamento dos salários reais.
[…] repete-se constantemente, inclusive com o apoio de arquitetos e engenheiros “progressistas” que, no Brasil, é importante a manutenção das características atuais da construção civil porque ela é um campo de absorção de mão-de-obra. Ora, vimos que a construção civil realmente sofre tremenda pressão do exército de reserva de força de trabalho. Mas, vimos também que este exército provém fundamentalmente do campo e procura a construção civil como serventes que dispensam qualquer qualificação. Não seria mais racional – ao invés de remediar a migração ininterrupta campo-cidade através de um processo de produção absurdo, arcaico, altamente explorador, incapaz de resolver realmente o enorme déficit habitacional – atacar a causa real de tal migração doentia: a estrutura retrógrada do campo?[…]
[…]O governo fala no boom da construção civil a partir de 1967. A mão-de-obra no setor, diz ainda o governo, passou de 12% a 20% (supõe-se que da mão-de-obra urbana-industrial). Imensos interesses se concentram: ora, para o industrial isolado que, no imediato, deseja uma “lua de mel”, a industrialização do setor é uma perspectiva tentadora, apesar de contrariar seus interesses de classe. Já se pode apontar os primeiros investimentos. Seguramente, a forma de produção arcaica será contestada por capitalistas cuja fome próxima de mais-valia afasta a cautela a longo termo. Os prognósticos, no caso, são bastante difíceis. O que é seguro é que haverá atrito entre os capitalistas isolados e seus representantes no poder, que têm olhos postos na classe e menos no seu componente particular. Mas não ultrapassará, seguramente, a região das disputas cordiais. Afinal, eles se entendem.
FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” in ARANTES, Pedro (org.); Sérgio Ferro – Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. pp 100-101
obs: todos os grifos são meus
Apesar de um tanto quanto datado (especialmente com relação ao problema do êxodo rural, não mais evidentemente a causa da pressão por baixos salários na esfera urbana), o raciocínio geral permanece aplicável. De fato, repetimos (deliberadamente ou não) os mesmos erros.