Em 25 de junho deste ano foi publicado no Wall Street Journal um artigo sobre arte-educação assinado por uma tal Michelle Marder Khami em que se discutiam alguns exemplos isolados de métodos de ensino aplicados por professores de arte em algumas escolas estadunidenses. Tratando-se de um jornal conservador e liberal como o WSJ, não deveria ser surpreendente que a abordagem adotada fosse igualmente conservadora: ninguém esperaria que o periódico ultracapitalista publicasse alguém citando autores ligados à pedagogia crítica ou advogando a educação popular. O que chama a atenção, porém, é o tom agressivo da autora contra correntes de ensino progressistas. Alega ela ser Paulo Freire uma praga entre os educadores norte-americanos (antes fosse Freire realmente uma referência importante, não apenas marginal, entre os professores dos EUA!), procurando o tempo todo evocar um modelo de ensino de arte — para crianças, lembre-se… — baseado em disciplina, opressão e sobretudo (ao se utilizar do eufemismo “meritocracia”) competição.
caça às bruxas
A maneira macartista patética com que a autora se refere ao universo da arte-educação (que estaria sendo infiltrado por “comunistas” tentando transformar as crianças em pequenos “ativistas vermelhos”) foi logo notada pelo pesquisador Richard Kessler em seu blogue. Aparentemente a tal Khami é uma lobista de artistas realistas e clássicos (seja lá o que isto signifique) e já tem escrito sobre o tema há pelo menos uma década. O clima de caça às bruxas é uma constante e ela chega mesmo a tomar Ayn Rand como o grande modelo para sua concepção de arte (por mais que Rand associasse o modernismo, e não o classicismo, à sua visão de uma América egoísta, liberal e tomada por um capitalismo meritocrático, como se vê no dramalhão non-sense Fountainhead).
Os EUA têm destas coisas. Trata-se de um país em que existe até mesmo uma escola que defende que o único modelo correto para formação de arquitetos é o da arquitetura clássica (em uma universidade com nome afrancesado…). Caso fosse algo residual, nenhum problema haveria.
festa do chá
Contudo, aquele péssimo artigo foi veiculado no jornal de maior publicação do país. Mais do que ecos da esquizofrenia momentânea do Tea Party, aquele artigo representa um país que simplesmente não consegue lidar com seus próprios problemas de segregação, pobreza e miséria em ascensão. Ergue-se a partir de argumentos fracos: alega que a arte-educação atualmente defendida pelos profissionais e acadêmicos da área simplesmente não lida com “arte”, pois não ensina as crianças a pintarem, desenharem, etc. O argumento por si só é falacioso, mas tudo fica ainda mais obscuro quando a autora ataca a ideia de “justiça social” (que foi mote de um encontro recente da Associação norteamericana de arte-educadores) pois, segundo ela (em uma versão ampliada do artigo), trata-se de algo que desafia a Constituição estadunidense, pois tal carta defenderia apenas a isonomia perante a lei. A sociedade americana, para ela, teria sido construída por meio da competição e da meritocracia, valores que deveriam ser valorizados nas aulas de artes. A autora parece desejar aulas de arte como as de escolas do século XIX (talvez até mesmo com direito a separação das classes por sexo, estudantes uniformizados e sujeitos a palmatórias para que os professores satisfaçam seus desejos reprimidos), nas quais tutores rigorosos controlavam os movimentos dos estudantes e censuravam quaisquer desvios dos modelos canônicos. Tratava-se, afinal, de uma censura, em última instância, ao próprio corpo: nas aulas de desenho, o gesto da mão do aluno estava programado, devia obedecer aos vícios de seus mestres; o mesmo valia ao esculpir e ao pincelar. Ao atacar os arte-educadores que hoje buscam compreender melhor sua prática pedagógica estudando nomes fundamentais como Paulo Freire, ao atacar os arte-educadores que entendem que sua presença na sala de aula é fundamentalmente política e por conta disto possuem enorme responsabilidade perante os cidadãozinhos com quem trabalham, ao atacar os professores que insistem em desafiar o senso comum ao tratar os estudantes como sujeitos em processo de aprendizagem e não objetos nos quais se depositam informações — enfim, ao atacar uma pedagogia que não se pretenda alienada da possibilidade de transformar o mundo —, aquela autora está simplesmente reafirmando que o papel de um professor de artes é, além de programar a mão do aluno, programar antes de tudo sua mente com os vícios e os preconceitos do mestre, tratando os estudantes como aprendizes.
Pelo visto, o jeito Revista Veja de fazer jornalismo saiu da periferia e contaminou até mesmo o centro do capitalismo.
educação pela arte
Tais críticas à arte-educação simplesmente encaminham-se em sentido oposto àquele potencializado pelas oportunidades de rica aprendizagem e de construção da autonomia que o ensino de arte propicia. Defender um ensino de arte disciplinar e punitivo, além de algo ultrapassado, é o mesmo que negar ao estudante a possibilidade de trilhar seu próprio processo de aprendizagem. É simplesmente negar à arte o status de campo do conhecimento, reduzindo-a a mero treinamento alienado.
E nem mesmo é necessário recorrer a um professor genial como Paulo Freire para reconhecer o quanto a autonomia crítica é fundamental ao ser humano em formação. Já nos anos 40, não longe daqui, na cidade de Rosário, na Argentina, uma escolinha dirigida por uma certa Senhorita Olga nos mostrava o potencial da educação pela arte na construção do conhecimento e na formação de cidadãos.
Não se trata de introduzir a prática artística em processos pedagógicos por ser ela “bonitinha”, meramente lúdica, como que entendendo a arte pela expressão popular “criança arteira”. A arte existe para desafiar a cultura estabelecida e só deve fazer sentido quando deliciosamente subversiva (mesmo para crianças, como nos provou a senhorita Olga).
O pouco de “educação artística” que tive no ensino médio era bem assim. Não era educação, nem artística, e o ensino era mais medíocre que médio. Você não fica cansado ao ler artigos tão mesquinhos? Eu perco o fôlego, fico verde…
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é bem por aí
o pior é que esse chá que os EUA andam tomando, mais do que alucinógeno, gera síndromes de pânico e paranoia desmedida…
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