A habitação proletária na Broadacre City foi pensada por Frank Lloyd Wright como um conjunto de edificações baseadas em mistos de sistemas industrializados e de autoconstrução. Como se sabe, Wright imaginou sua cidade usoniana utópica (melhor seria dizer: “sua anticidade distópica“) como uma grande estrutura territorial em que a segregação de classes própria do capitalismo estaria praticamente naturalizada no espaço (pobres e ricos somente se cruzariam nos espaços de trabalho). Sobre a casa operária, dizia o que segue:
[…] para começar a construir seu lar, é preciso que ele seja capaz de comprar barato o gabinete padronizado e moderno. Esse civilizado “gabinete” é, em tais circunstâncias, uma unidade de banheiro completo, fabricada industrialmente, que lhe é entregue acabada, como unidade isolada (como seu carro ou geladeira), pronta para uso assim que ligada ao sistema urbano de distribuição de água e a um tanque séptico de quinze dólares ou a uma fossa de quarenta. Bem orientado, ele instala essa primeira unidade onde quer que pretenda dar início à sua casa, sendo que outras unidades, igualmente baratas e úteis, projetadas para finalidades vitais, breve poderão ser acrescentadas.
Wright (1945, p. 86) citado por Peter Hall em Cidades do amanhã, Editora Perspectiva, 2005.
pré-fabricação ocultando a luta de classes
Na tradução brasileira do livro O urbanismo, organizado por Françoise Choay, o trecho aparece da seguinte forma (nesta edição a transcrição do texto original é apenas parcial, as supressões que constam no excerto seguinte fazem parte dela):
O habitat das classes trabalhadoras
As classes socialmente desfavorecidas poderão comprar uma unidade de alojamento individual completa […], pronta a ser habitada no instante preciso em que for conectada com o sistema de adução de água da cidade e com uma fossa séptica de quinze dólares. […] O trabalhador instala sua primeira unidade no lugar em que deseja estabelecer sua morada. Logo vai acrescentando unidades idênticas; elas são baratas e concebidas organicamente, para satisfazer os usos cotidianos. […] Todas essas unidades-standard poderão variar no modo de se reunir, com a finalidade de harmonizar-se, de acordo com o caso, com uma planície ou com um horizonte de colinas.
Unidades pré-fabricadas
No fim de um ano ou dois, o “pobre” pode assim possuir uma morada acolhedora e bem equipada — as casas oferecem qualidade e variedade. […]
A liberdade na reunião e na utilização das unidades é tamanha que qualquer cidadão pode fazer de sua casa um todo harmonioso, adaptado a sua pessoa e a seus meios, ao solo que ocupa e ao deus que venera. Enquanto outrora o trabalhador só podia escolher entre protótipos concebidos por um sentimentalismo reacionário, […] e tinha de equipá-l0s em grande quantidade, […] pela qualidade de seus investimentos, ele tornar-se-á igual a qualquer “rico”. O pavilhão possui possui a mesma qualidade do palacete de luxo, da fábrica ou da fazenda.
Que lugar corresponde às classes socialmente menos favorecidas da cidade livre? Com base na igualdade, os indivíduos pertencentes a elas desfrutam agora dos mesmos critérios de qualidade que os ricos […]. Graças à qualidade de um modelo de alojamento adaptado à época, ao local e às circunstâncias, sentir-se-ão em casa, em sua morada, imediata e maravilhosamente ligados ao solo em que vivem. […]
Otimista, não política, não urbana, camponesa: nossa imagem da cidade é efetivamente tudo isso. Esta é a ideia realizável de uma cidade orgânica, social e democrática, resultante de uma sociedade criadora — em resumo, da cidade viva. Assim, abole-se não só o “apartamento alugado” e a escravidão do salário, mas cria-se o verdadeiro capitalismo. O único capitalismo possível, se a democracia tem o menor futuro.
[Wright em Choay, pp. 243–244]
Do ponto de vista meramente tecnológico, é notável que a noção de Wright de modularidade seja razoavelmente contemporânea, mais avançada que aquela empregada na pré-fabricação europeia do período, pois supera a ideia mais vulgar de “módulo” como um padrão simplesmente dimensional (noção que, por si só, ainda gera muita confusão até hoje) , sugerindo a necessidade de interface entre módulos que se constituem como unidades industrializadas. Em certo sentido, está defendendo a pré-fabricação aberta.
É ainda notável por associar a industrialização da construção civil com uma certa ideia de autoconstrução. Em seu sonho de capitalismo perfeito, não só Wright entende que o estabelecimento de meios para a manutenção da reprodução da força de trabalho seja tarefa da classe operária e não do Estado (sobretrabalho com redução geral dos níveis de salário, brasilianização dos EUA…) como também entende que a autoconstrução seja ela própria um mercado a ser explorado.
da “broadacre city” ao “trailer park”
Há vários encaminhamentos para esta reflexão possíveis: que conhecimento arquitetônico popular pode ser engendrado aí? A apropriação popular de tais tecnologias construtivas avançadas poderia sugerir uma possibilidade de autonomia? Esta autonomia construtiva popular poderia significar a criação de espaços de resistência? Este esquema poderia gerar espaços autônomos populares distantes da característica opressão urbana das periferias autoconstruídas dos países marginais do capitalismo?
Ou seja: contra o capitalismo harmônico dos sonhos de Wright, cuja luta de classes estaria oculta no território espraiado e no qual todos são estranhamente felizes, seria possível uma apropriação tecnológica tal que levasse a uma autonomia de classe?
Quando este modelo utópico (ou distópico) proposto pelo mestre estadunidense é confrontado com a realidade arquitetônica de grande parte da população pobre daquele país, este sonho de capitalismo perfeito revela-se um pesadelo: seriam os trailer parks a versão bizarra e assustadoramente real do sonho wrightiano aliado de fato ao verdadeiro capitalismo americano?
Trailer trash é uma expressão preconceituosa utilizada pelas classes médias e elites nos EUA para se referirem pejorativamente às populações pobres que vivem em condições precárias, devido à associação com os extensos “estacionamentos” de trailers — uma espécie de versão no capitalismo avançado de favelas sobre rodas, adaptadas ao urbanismo rodoviarista. A expressão é sobretudo associada à população pobre branca, pois em um país tão racista, o fato de brancos submeterem-se a viver em tais condições é visto como algo próprio da barbárie.