Fonte: https://philly.curbed.com/2016/4/22/11487922/historical-photos-first-earth-day

ian mcharg, gênero e ensino

Em sua autobiografia (intitulada A Quest for Life, publicada em 1996), Ian McHarg vez ou outra tece alguns comentários destacados do texto principal sobre assuntos que lhe parecem laterais àquela narrativa. Em alguns momentos o autor fala de episódios curiosos de sua vida profissional e em outros ele aproveita tais pausas para expor sua opinião sobre temas mais sociais e políticos mais amplos. Em uma dessas oportunidades ele aproveita para comentar a respeito da porcentagem de mulheres em posições de ensino e pesquisa nas escolas de arquitetura (e, particularmente, de paisagismo) nos EUA no período em que o paisagista lecionou (entre os anos 50 e 70).

McHarg comenta a quase ausência de mulheres no Departamento de Arquitetura da Paisagem da Universidade da Pensilvânia, onde lecionava desde sempre. Tratava-se, afinal, de uma universidade da Ivy League e, portanto, de um espaço representativo e importante ido ensino superior nos EUA.

Com seu estilo conciliador e algo auto-elogioso, McHarg destaca o papel que teve ele próprio no aumento gradativo do número de mulheres tanto no corpo docente quanto no discente, quando de seu período como coordenador no departamento. McHarg sempre parece ter adotado a figura de uma espécie de gentleman moderno, simultaneamente progressista e conservador, mantendo ao mesmo tempo um ar professoral e paterno e, ao que parece, um legítimo interesse por transformações contemporâneas e pautas minoritárias.

O trecho a seguir ajuda a entendê-lo como a figura conciliadora que era, mesclando reformismo e tradição. Ao não apontar o protagonismo feminino na luta das próprias mulheres pela conquista de espaços de poder (como os da academia), mas, ao contrário, ao posicionar a importância de si mesmo nessa conquista/concessão (um homem branco, rico, ocidental, etc), McHarg também se revela um legítimo personagem estadunidense: afinal, poucas coisas são tão características desse fascinante país como a contínua (às vezes quase imediata) capitulação e ressignificação de pautas contra-hegemônicas pelo sistema dominante.

Durante meu tempo como coordenador da arquitetura da paisagem e do planejamento regional, a proporção de mulheres cresceu tanto entre docentes quanto entre discentes. […] Então, com Ruth Patrick, Carol Franklin, Leslie Sauer, Setha Low e Sally Anderson, o corpo docente, atingiu paridade de gêneros em todos dos campos, com exceção dos estúdios de projeto. Não havia, infelizmente, equivalentes femininos nos estúdios de projeto de Penn a Peter Shepheard, Bob Hanna, Laurie Olin, A. E. Bye ou Jon Coe. Entretanto, o processo está em curso. […]

Ao longo de vinte anos, o corpo docente feminino em arquitetura da paisagem em Penn cresceu de zero para quase paridade, e o mesmo processo pode ser testemunhado entre os estudantes. Em 1954, meu primeiro ano em Penn, havia duas estudantes mulheres (Joan Taylor e Ty Learn). Nas últimas duas décadas os estudantes passaram a mais ou menos equivaler em gêneros. Consigo me lembrar do momento em que a mudança ocorreu.

Durante a primeira década, o número de jovens mulheres limitava-se a um ou duas por turma. Tratava-se de um mundo de “trabalho de homem”, de acordo com a visão de mundo enviesada da época. A maior parte das escolas da Ivy League admitiam apenas homens e a maioria das escolas de arquitetura tinha uma cota de mulheres. O programa de arquitetura de Penn, entretanto, era completamente excludente. […]

A tática de requisitar formação em arquitetura para nosso programa de Master of Landscape Architecture (M.L.A.) provava-se à época bem sucedido. Estes estudantes rapidamente adquiriam uma reputação por um projeto habilidoso. Porém, com a introdução da ciência no programa, e notavelmente da ecologia, ficou claro que um corpo discente composto por arquitetos era inapropriado para um currículo baseado em ciências ambientais. Então introduzimos um novo programa de M.L.A. em três anos voltado a pessoas sem diplomas profissionais. Esses novos candidatos com B.A.s. e B.S.s eram altamente inteligentes, não apresentavam qualquer antipatia à ciência e traziam consigo novos saberes e ideias. O programa de três anos atraiu um público ampliado e — eu reconheci de imediato — continha uma proporção significativamente maior de jovens mulheres. Isto era uma fonte de inteligência e paixão, como passei a apreciar, e podia efetuar importantes contribuições à profissão. Mudei então minha tática e passei a dar séria atenção às mulheres como fonte de recrutas entre os candidatos.

Eu me lembro bem do episódio em 1960 que mudou o recrutamento na Universidade da Pensilvânia e que teve, de fato, um efeito profundo e benéfico na profissão e no ensino.

A ocasião envolvia um encontro dos docentes para considerar candidaturas, aprovar admissões e conceder bolsas de estudos. Para estas, as inscrições eram arranjadas pela classificação que associávamos aos currículos, cartas e portfólios. Os documentos disponíveis para a seleção não permitiam reconhecer raça ou gênero dos candidatos — apenas eu conhecia suas origens. Participei da seleção: número um, dois, três, quatro, cinco. Fiquei espantado: não podia mais me conter. “Cavalheiros,” eu disse, “quando vamos escolher o primeiro homem?”

Este foi o limiar. A proporção de jovens mulheres cresceu de ser escassa e desigual para a situação atual, mantida por várias décadas, na qual metade dos estudantes são mulheres.

MCHARG, Ian. Women in Lanscape Architecture at Penn. In: A Quest for Life: An Autobiography. Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1996, pp. 231–232.

Destaque-se, aliás, a suposta dificuldade naqueles anos de encontrar “equivalentes femininos” aos notáveis titulares das disciplinas de projeto. Não deixa de ser significativo o fato da presença feminina entre o corpo docente daqueles anos ser em grande medida oriunda de outros campos (como ecologia, antropologia, etc.), assim como o estúdio de projeto (tradicional espaço de poder privilegiado no interior dos cursos de arquitetura) se manter essencialmente masculino. Do mesmo modo, é significativo o fato da maior parte de estudantes mulheres dos Masters do departamento serem oriundas de campos das ciências, e não da arquitetura ou de outros cursos com perfil projetual.

Imagem: manifestação na Filadélfia durante o primeiro Dia da Terra, em 1970. Ian McHarg foi um dos organizadores do evento. Fonte: https://philly.curbed.com/2016/4/22/11487922/historical-photos-first-earth-day

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