exposição "steve jobs, o visionário" (museu da imagem e do som, junho de 2017)

sobre a exposição “steve jobs, o visionário”

Em janeiro de 2015 visitei pela primeira vez o Museu da Cidade de Nova Iorque. Trata-se sem dúvidas de um excelente museu: apesar de pequeno, possui boas curadorias, expografias bem produzidas e um manejo engenhoso dos recursos que aparenta ter disponíveis, certamente mais modestos que os dos demais espetaculares museus novaiorquinos. Algo em uma de suas exposições de longa duração, no entanto, havia me incomodado: tratava-se de uma sala com uma mostra sobre a trajetória de movimentos contra-hegemônicos e de resistência ao longo da história da cidade. Do abolicionismo do século XIX ao movimento pró-ciclistas do fim do século XX, do sindicalismo revolucionário às lutas anti-gentrificação, do ambientalismo ao movimento pelos direitos LGBT, a sala reunia de forma panorâmica várias das culturas políticas que caracterizaram diferentes períodos e espaços do território novaiorquino. O que incomodava nessa sequência (que, por si só, já corria o risco de homogeneizar e eventualmente minimizar diferentes pautas, minorias e reivindicações) era o fato de que o museu já havia incorporado (ao seu acervo e à sua expografia), passado pouco mais de um mês dos acontecimentos, os registros de manifestações de novembro e dezembro em protesto à morte pela polícia de jovens negros de comunidades de baixa renda (tanto de Nova Iorque quanto de outras cidades americanas, como Eric Garner, Michael Brown e Akai Gurley).

museu da cidade de nova iorque
Exposição sobre a história do ativismo em Nova Iorque. Museu da Cidade de Nova Iorque, janeiro de 2015.

Se, por um lado, a incorporação tão ágil desse registro indica uma atitude museológica ativa e eficiente por parte do museu, trata-se, por outro lado, de um indício também problemático da força com que a sociedade estadunidense espetaculariza, mercantiliza e incorpora institucionalmente a seus espaços de memória as imagens de suas tensões e feridas mais profundas. Esta incorporação, aliás, parece ser uma prática muito bem consolidada nos espaços institucionais americanos: ao invés de promover uma apagamento de memórias e discursos contra-hegemônicos por meio do silenciamento e do ostracismo, parece haver nesses meios uma fúria que tudo incorpora e, dando espaço a tudo, silencia pelo excesso — e sobretudo pela prática já celebrizada do “tokenism”, pelo qual elementos de culturas minoritárias ganham presenças institucionais meramente simbólicas e de fachada.

Em face disto, causa certa surpresa o quão ingênua — ou sincera? — é a proposta expográfica da mostra Steve Jobs, o visionário, em cartaz no Museu da Imagem e do Som desde 15 de junho de 2017, na qual fragmentos da história do empresário e de sua companhia, a Apple, são apresentados por meio de documentos originais, reproduções iconográficas e audiovisuais e recursos infográficos.

Expressão da mais pura atitude laudatória e mitificadora da figura espetacularizada de Steve Jobs, bem como da canonizada imagem da Apple, a exposição não faz qualquer menção aos muitos pontos críticos de sua polêmica trajetória como líder empresarial de um capitalismo cada vez mais violento e desumano: nenhuma palavra sobre os graves casos de suicídio de trabalhadores de linha de produção de produtos da Apple em decorrência de processos de hiperexploração do trabalho; nenhuma menção às práticas de assédio moral que eram associadas ao dia-a-dia de trabalho no contato direto com empregados; silêncio completo às reconhecidas e agressivas práticas monopolistas da Apple que se revelaram fundamentais para que ela atingisse a posição privilegiada que atingiu. A máxima concessão permitida pela exposição a uma leitura menos deificada da figura de Jobs se encontra nas prosaicas fotografias de Jean Pigozzi — que, no entanto, se limitam a retratar o dia-a-dia do que parece ser uma celebridade rodeada de outras divindades em cenários paradisíacos como Paris ou Nova Iorque.

Tal é o caráter celebrativo e publicitário da exposição que ela bem poderia ter sido concebida e montada por uma agência de publicidade e não por um museu. De fato, embora a curadoria e a expografia tenham sido desenvolvidas pelo escritório Migliore + Servetto Architects, a coordenação e a encomenda da exposição são iniciativa da agência italiana Fullbrand. O cenário obtido pelo projeto expográfico e luminotécnico, com efeito, é em grande medida o de uma loja bem decorada e descolada. O resultado é uma linguagem expográfica que sugere uma relação com produtos e mercadorias, mais do que com artefatos, ainda que tratadas de um modo que reitera seu fetichismo e sua aura e as transforma quase em monumentos contemporâneos.

Não que museus contemporâneos não operem de forma igualmente publicitária, mas em geral o fazem de um modo um tanto quanto envergonhado: nesta exposição, não há motivos para dissimulações ou hipocrisias, trata-se da mais sincera bajulação a um ídolo contraditório do capitalismo contemporâneo. O caso do Museu da Cidade de Nova Iorque, acima, é o típico caso do veículo da cultura hegemônica que incorpora a crítica ao status quo (e, portanto, a si mesmo) como forma de apaziguamento e mediação de conflito. Já no caso de “Steve Jobs, o visionário”, não há qualquer motivo para apaziguar ou mediar qualquer conflito: o mundo é perfeito e aqueles que discordam simplesmente não o compreendem.

museu da imagem e do som de são paulo: exposição “steve jobs, o visionário”
Exposição “Steve Jobs, o visionário”. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, junho de 1984. Nas vitrines: Macintosh original, 1984.

Os curadores dividiram a exposição em seções que bem poderiam intitular os capítulos de um livro de auto-ajuda (“sonhos”, “negócios”, “espiritualidade”, “inovação”, etc.). Apesar da engenhosidade de alguns dispositivos expositivos (como o uso de ganchos de telefone ao invés dos usuais fones de ouvido para escutar registros sonoros ou o uso de iPods para exibir as músicas mais ouvidas por Jobs), o efeito obtido é uma narrativa tradicional e repleta de clichés, que centraliza em Jobs a criação “genial” dos produtos da Apple e de suas estratégias de mercado, com direito à reiteração de alguns mitos de origem comuns em representações midiáticas de sua trajetória pessoal (como a relação com o universo da contracultura californiana e com a cultura do “selfmade man que aprende com o próprio fracasso”).

Neste sentido, estão lá as mitificadas referências ao Whole Earth Catalog de Stewart Brand e à cultura “turn on, tune in, drop out” de Thimoty Leary, bem como mercadorias vendidas pela Apple que, apesar de terem sido fracassos de vendas, teriam se transformado em relíquias valiosas, testemunhas da suposta capacidade de resiliência e readaptação do visionário Jobs, como o computador Lisa e os produtos da Next, empresa fundada por Jobs após sua saída da Apple em meados dos anos 1980.

 

museu da imagem e do som de são paulo: exposição “steve jobs, o visionário”
Seção da exposição “Steve Jobs, o visionário” dedicada a referências contraculturais. Em destaque na vitrine edições do Whole Earth Catalog. São Paulo, Museu da Imagem e do Som, junho de 2017.
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Exposição “Steve Jobs, o visionário”. São Paulo, Museu da Imagem e do Som, junho de 2017.
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Exposição “Steve Jobs, o visionário”. São Paulo, Museu da Imagem e do Som, junho de 2017.

 

O espaço expositivo principal está localizado no primeiro pavimento do museu e o acesso a ele se dá após uma breve caminhada por uma espécie de túnel dedicado à imersão na cultura ao ego de Jobs: fotografias e citações do empresário precisam ser atravessadas ao longo de um corredor, dispostas nas duas paredes laterais em meio a estruturas espelhadas nas quais o reles mortal espectador acaba se vendo em meio às imagens espetaculares de Jobs. A perspectiva do corredor leva ela própria a uma vídeo-colagem repleta de ainda mais imagens do rosto do titã californiano — o próprio acesso ao piso superior acaba se reduzindo a mera passagem secundária. Terminado esse percurso, somos ainda mais uma vez submetidos a uma avalanche de imagens de Jobs no patamar intermediário da escada, no qual foram dispostas as vitrines com uma enorme seleção de revistas das mais variadas naturezas destacando em suas capas a figura de Jobs.

museu da imagem e do som de são paulo: exposição “steve jobs, o visionário”
Corredor de acesso à exposição “Steve Jobs, o visionário”. São Paulo, Museu da Imagem e do Som, junho de 2017.

Curiosamente, em ponto imediatamente anterior à saída da exposição, junto ao espaço expositivo principal, foi posicionada uma sala que, em meio a tanta pirotecnia expositiva, serve de breve referência aos espaços expositivos usuais de museus e galerias mais comuns: quase um tradicional “cubo branco” (ainda que escuro e pintado de preto), trata-se da sala dedicada às fotografias do cotidiano de Jobs produzidas por Jean Pigozzi. Não deixa de ser curioso o fato de que, quando se torna necessária a exposição de peças mais usuais ao cotidiano de museus tradicionais, recorre-se a um vocabulário expositivo igualmente tradicional.

museu da imagem e do som de são paulo: exposição “steve jobs, o visionário”
Sala da exposição “Steve Jobs, o visionário” dedicada às fotografias de Jean Pigozzi. São Paulo, Museu da Imagem e do Som, junho de 2017.

Finalmente, junto à saída da exposição, foi instalada uma ação promocional do Banco Next — que, pelo visto, não se importou de adotar o mesmo nome de uma das empresas que Jobs faliu — que permite ao visitante experimentar, por meio de um Oculus Rift, o momento mítico de fundação da Apple na legendária garagem da casa da família de Steve Jobs na qual os primeiros computadores Apple I teriam sido supostamente fabricados. O visitante, mero mortal que é, vê-se milagrosamente transportado à pele de Jobs, enquanto é orientado por seu sócio Steve Wozniak a montar as peças finais daquele computador. Em meio a uma exposição repleta de relíquias tão adoradas, concluímos o ritual de veneração à figura de Jobs com a própria comunhão de nossa carne com seu espírito.

 

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