Museu do Aljube

aljube, lugar de memória

Durante a ditadura salazarista em Portugal — que durou dos anos 1930 aos 70 — o governo fascista usou um velho edifício localizado próximo à Sé de Lisboa, no centro da cidade, como espaço de repressão e reclusão de opositores ao regime. Conhecido como Cadeia do Aljube, o edifício — cujas origens remontam ao período medieval de ocupação muçulmana de Lisboa — constitui hoje lugar de memória privilegiado para a discussão da problemática em torno dos crimes e violações de direitos ocorridos no período autoritário, bem como das estratégias de resistência, da luta anticolonial e do processo revolucionário que enfim derrubou o regime em 1974. Musealizado desde 2015 como espaço voltado à pesquisa, preservação e divulgação dos registros e memórias da resistência e da repressão durante o Estado Novo português, o local abriga hoje o Museu do Aljube — Resistência e liberdade, instituição municipal que além de promover a exposição permanente e as temporárias, tem por objetivo ainda a manutenção de um centro de documentação sobre o período e um serviço educativo.

O edifício já possuía uma trajetória prévia como espaço de reclusão anterior à ditadura salazarista, assumindo a condição exclusiva de espaço de repressão contra opositores no Estado Novo e articulando-se diretamente à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), órgão oficial de repressão do regime. Neste sentido, trata-se de espaço análogo a locais como as sedes do DOPS (no edifício que atualmente sedia a Estação Pinacoteca e o Memorial da Resistência) e do DOI-CODI (atualmente uma delegacia no bairro da Vila Mariana), em São Paulo — todos esses espaços usualmente chamados de “lugares de memória e consciência” ou “lugares de memória difícil”, dada a pesada e complexa carga de memórias traumáticas que eles sustentam. Na condição de bens culturais peculiares, impossíveis de serem reduzidos ao mero caráter documental de suas estruturas materiais — visto que se constituem de espaços que ocupam posições simbólicas cruciais em uma teia de memórias e referências que transcende em muito o fato de documentarem esta ou aquela técnica construtiva ou este ou aquele aspecto estilístico —, tais espaços suscitam igualmente complexas questões de intervenção, uso e ocupação. Há que se destrui-los “ritualmente”, como forma de expurgar um passado dolorido e abrir caminho para algo novo menos violento e traumático? Ou, ao contrário, é preciso preservá-los para que, como pregam ex-militantes, “nunca mais se esqueça e nunca mais se repita”?

Museu do Aljube
Museu do Aljube
Museu do Aljube
Museu do Aljube. Na vitrine: facsímiles de documentos censurados pelo regime salazarista.

Visitei o Museu do Aljube no início de janeiro de 2018, na mera condição de turista. Neste sentido, faço aqui um relato de alguém que se deslumbrou com o local nesta condição de viajante, sem qualquer outro compromisso crítico ou profissional — motivo pelo qual não avanço aqui a respeito das questões de uso e ocupação que sugeri acima.

A exposição permanente é muito bem produzida: conta com expografia competente e bem desenhada (ainda que um pouco excessivamente cenográfica em determinados momentos, abusando pontualmente de recursos sonoros e visuais de ambientação), adaptada de forma adequada às limitações do velho e labiríntico edifício. Inicia com uma  cronologia dos principais acontecimentos portugueses ao longo do século XX e contextualiza a constituição do regime. Segue com salas e espaços dedicados a diferentes aspectos do regime e da resistência a ele: exibe estratégias de organização e veiculação clandestina de ideias dos grupos opositores assim como as práticas de encarceramento e tortura adotadas pelo Estado.

O museu não se furta a apresentar momentos vergonhosos da história nacional, como o amplo apoio popular às medidas salazaristas (exibindo fotografias de multidões reunidas em comícios do regime nos quais todos efetuavam saudação fascista) ou os atos violentos de repressão por parte do Estado. Também não se furta a admitir que o país manteve espaços de reclusão ainda mais violentos, como o campo de concentração do Tarrafal (onde hoje também funciona hoje um museu de resistência). Apresenta ainda a desastrosa reação do governo salazarista aos movimentos de independência nas colônias ultramarinas portuguesas.

Museu do Aljube.
Museu do Aljube. Diorama representativo de espaço de grupo de resistência ao regime
Museu do Aljube
Museu do Aljube
Museu do Aljube
Museu do Aljube. Seção destinada às guerras de independência das colônias portuguesas.
Museu do Aljube
Museu do Aljube. Sala dedicada aos episódios do dia 25 de abril de 1974 (a Revolução dos Cravos).

A exposição permanente conclui com uma sala dedicada ao movimento militar de 25 de abril de 1974, que culminou na Revolução dos Cravos e no fim do regime fascista português, descrevendo a sucessão de acontecimentos naquele dia e especificamente a maneira como eles se distribuíram na geografia de Lisboa.

Trata-se, sem dúvidas, de uma excelente experiência museológica — sobretudo para alguém que visitava o local na condição de turista, como já ressaltei. Pode-se, no entanto, questionar o caráter excessivamente linear da narrativa produzida pela exposição, caso se lance sobre ela um olhar mais detido. Parece ter faltado ainda uma identificação mais explícita do conjunto ampliado de agentes efetivamente responsáveis pelos crimes de repressão, pela tortura e pela perseguição política, visto que — aos olhos de um estrangeiro, ao menos, e isso pode simplesmente não ter passado de uma impressão — o foco excessivo na figura de Salazar parece tornar a ditadura uma entidade abstrata, desprovida da agência dos indivíduos que de fato cumpriram e executaram as ordens que levaram às violações de direitos. Mais do que identificar culpados, trata-se de explorar, com perdão do uso grosseiro da expressão, a “banalidade do mal” a que a nação se submeteu nesses todos anos — assim como cá no Brasil, onde amplos extratos mais privilegiados da sociedade se beneficiaram das atrocidades cometidas por nossa própria ditadura.

Finalmente, há que se questionar também um certo triunfalismo que é consequência do caráter excessivamente linear da exposição. Ao findar a narrativa em 1974, perde-se a chance também de pensar nos ideias e princípios revolucionários que se perderam no caminho — como explicita a famosa alteração feita por Chico Buarque em sua canção Tanto mar, dedicada ao movimento.

Deixando de lado esses preciosismos meus, há que se louvar a iniciativa e todo o trabalho promovido pela equipe responsável pelo Museu do Aljube. Não deixa de ser vergonhoso, voltando ao Brasil, comparar a iniciativa, enquanto política pública, com a forma como normalmente é negligenciada pelo estado nossa própria rede de lugares de memória — tão bem protegida e evocada pela comunidade de antigos militantes e presos políticos e tão ignorada pelas instituições oficiais.

Cadeia do Aljube no início do século XX
Cadeia do Aljube no início do século XX. Acervo do Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:AljubeSecXX.jpg

2 comentários em “aljube, lugar de memória”

  1. Putz. Essa música do Chico é formidável.
    O Brasil não tem uma boa relação com o passado. A arquitetura aqui do centro de Sampa parece a cidade comendo a cidade, novas arquiteturas cobrindo antigas. Os logradouros da época da monarquia têm ainda marcas do apagamento: o vazio nos espaços de brasões, por exemplo.
    Gostei do blogue. Vou chatear de vez em quando; ).

    Curtido por 1 pessoa

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