repostagem: industrialização, profissão, bo bardi

Texto originalmente publicado em http://stoa.usp.br/gaf/weblog/48662.html no dia 28 de abril de 2009.

Se há algo que me incomoda é qualquer tipo de discurso corporativista, especialmente o dos arquitetos. No entanto, é por vezes interessante ver como os arquitetos sobrevalorizam sua profissão, taxando-a de imprescindível para a sociedade e para o desenvolvimento. No entanto, esta defesa apaixonada da profissão frequentemente ignora questões fundamentais da relação entre a figura do arquiteto e o estágio de desenvolvimento do capitalismo no país, ou de sua posição social em relação à teia de desigualdades e paradoxos que caracteriza o ornitorrinco brasileiro. Eu poderia passar horas citando Sergio Ferro e afins, mas uma reflexão de Lina Bo Bardi de fins da década de 1970 pareceu-me mais forte e inspiradora – mesmo que por vezes oposta ao pensamento daquele. Cito-a no final desta postagem.

***

Antes, um parênteses: a citação que segue é do livro The image of the architect, de Andrew Saint (1985) e tem um pouco a ver com o tema (o mesmo já foi citado outrora neste blogue).

The AIA has long been in the shadow of its more powerful sister bodies, the American Bar Association (ABA) and the American Medical Association (AMA); its first code of 1909 was even modelled on that issued in 1908 by the ABA.(…)

(…)Unlike doctors or lawyers, architects have not ‘cornered’ their professional market. They are, and always have been obliged to sell their wares. In their day the conceptions of architecture as ‘art’ or ‘profession’ were just as instrumental in promoting these wares as any latter-day management consultant’s manual. All that has happened is that these conceptions are no longer enough to hold or increase architects’ share of the market.

Yet despite the enthusiasm and success of the enterpreneurs, architects of all kinds continue to be disquieted by the tendency I have outlined. In an essay on the modern American profession, Bernard Michael Boyle quotes some dark ruminations of Nathaniel Owings, co-founder of America’s most succersful post-war practice, Skidmore, Owings and Merril: ‘What had we become? Certainly not designers in the classic sense. We were enterpreneurs, promoters, expeditiers, financiers, diplomats; we were men of too many trades and masters of none’.

There are vestiges of conservatism in this. Architects hanker for the halcyon days when practices were small, comfortable affairs run by people with money enough of their own not to need to do much better than break even. They perhaps fear too that the great business gamble may not succeed – that when pitched into the open market besides builders, engineers and surveyors few of them may have the methods, skills and discipline to hold their own. Protection, from the professional point of view, may still be the wiser option than out-and-out commercialization, though in the US at least there hardly be a turning-back now.

But disquiet has a simpler a juster basis too: fear for the quality of the product. As the forces of late capitalism make themselves increasingly felt, profit for the professions becomes a motive more compelling than status and class, and the interest of architects falls into line with that of others in the construction industry. ‘Total design’, says Boyle speaking of SOM, ‘was conceived as a device of control as much as a service, a constituent of the service package which was the office’s product’. Art, when used wisely and maturely, helps to make buildings attractive. Professionalism interpreted to mean responsibility and disinterstedness, helps to ensure that they are well built. But the laws of the market require only that they profitable to someone, be he the enterpreneur, architect or builder. In this transaction neither the user nor the passer-by has a place, except by accident. The wider community thus loses its involvement with the process of building.

O autor está descrevendo e buscando algumas das causas, de maneira excessivamente breve e pouco aprofundada, dos sentimentos de despreendimento e não-pertencimento que são próprios do contexto no qual se inserem as obras de arquitetura que ele têm em mente, assim como seus arquitetos, e sua relação com a sociedade (uma condição “pós-moderna”, com muitas aspas). Interessa mais as perguntas que ele sugere no parágrafo a seguir.

Architecture is still a liberal profession and attracts people whose thoughts transcend self-interest. [idealismo excessivo…] But if commercialization continues apace that can hardly be maintained for long. If the next few generations of architects cannot define some new relationship between the public and the process of building, they will lose that special sense of identity which the profession has treasured for so long.

fonte: SAINT, Andrew.”The architect as entrepreneur” in The Image of the Architect. New Haven e Londres: Yale University Press, 1985. pp 159-160

O trecho acima lembrou-me Diane Ghirardo, em seu famoso texto de 1984 sobre “arte x serviço”:

Em nenhuma de suas diversas manifestações, a categoria dos arquitetos ousa questionar a política de construção: quem constrói o quê, onde, para quem e a que preço. Apesar de ser um dos temas mais importantes para a reflexão dos arquitetos, e uma questão para a disciplina, poucos se referem ao problema da política da construção civil. É certo que os arquitetos, como profissionais, fazem muito pouco para terem uma participação em decisões de tamanha importância; por exemplo, não se empenham em organizar comitês de mobilização política e, em virtude dessa omissão, ocupam-se de questões triviais de moda e gosto. A arquitetura anêmica que resulta dessa atitude de aquiescência assola nossas cidades. (…)

Somente quando os arquitetos, os críticos, e os historiadores aceitarem a responsabilidade pela atividade de construir – em todas as suas ramificações – teremos condições de produzir uma arquitetura substantiva.

fonte: GHIRARDO, Giane. “A arquitetura da fraude” in NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. pp 422

***

bardi

A seguir, excerto de uma fala de Lina Bo Bardi em um seminário promovido pelo IAB em 1979 (todos os grifos são meus):

 O Artigas e o Kneese de Mello nos deram uma injeção de otimismo quando falavam dos tempos heróicos, quando as idéias eram claras e os fins também claros. Hoje estamos numa situação um pouquinho diferente. O que é que vocês vão fazer? Lutar contra os engenheiros? Lutar contra os pedreiros, contra os escritórios técnicos? Claro, é uma luta de classes, mas o problema é outro, o problema é o que vocês vão fazer não como base profissional, mas como fins. A arquitetura chegou a uma nova utopia. A obsolescência da arquitetura hoje é clara, a perda de sentido das grandes esperanças da arquitetura moderna, claríssima. (…)

(…)O entusiasmo pela tecnologia, isto é, pela prática científica que informou toda a arquitetura contemporânea transformou-se em tecnocracia, em teoria dos modelos. (…)

(…)Transformou-os num pseudoproblema de papel.(…)

A recuperação do sentido de responsabilidade social é o primeiro passo para se chegar a uma visão clara que permita conservar os princípios da arquitetura moderna, que hoje estão ameaçados de afundar. (…) Estou em desacordo com meu querido amigo Kneese de Mello quando diz que os pedreiros não devem fazer arquitetura. Acho que o povo deve fazer arquitetura. É importante que o arquiteto comece projetando pela base e não pela cúpula.

O perigo gravíssimo é o da volta ao artesanato que está se operando nos Estados Unidos e na Europa. Ninguém pode voltar a Ruskin e Morris. A volta ao artesanato e ao folclore é uma coisa impossível, ainda mais no Brasil, onde o artesanato não existe. O que existe é um pré-artesanato popular, e não a verdadeira estrutura social artesanal como nos países mediterrâneos.

(…)A figura do arquiteto trabalhando em cooperativa é perfeita.(…)

Paralelamente à arquitetura, os problemas do industrial design se apresentam com violência ainda maior. Tudo aquilo que está se produzindo no que se chama de industrial design é uma produção praticamente inútil. Na base de uma nova realidade, o estudo da verdadeira realidade, está a solução para esses entraves. Os problemas de classe são muito importantes, mas vocês não têm mais ninguém na frente, a não ser uma estrutura que não é somente da arquitetura, e que vocês não vão poder superar somente com os meios da arquitetura e do desenho industrial que “salvavam os homens”.

fonte: BO BARDI, Lina. “Arquitetura e tecnologia” in XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo: Cosac & Naify. 2002. pp 271-273

Bo Bardi continua atual e brilhante.

 

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.