originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/05/13/paulo-freire-comunicacao-ou-extensao-trecho-capitulo-3/
pp 73–74
[…] parecem-nos indispensáveis algumas considerações finais, neste capítulo, a propósito do aspecto humanista em que deve estar inspirado o trabalho de comunicação entre técnicos, num processo de reforma agrária, e camponeses.
Aspecto humanista de caráter concreto, rigorosamente científico, e não abstrato.
Humanismo que não se nutra de visões de um homem ideal, fora do mundo; de um perfil de homem fabricado pela imaginação, por melhor intencionado que seja quem o imagine.
Humanismo que não leve à procura de concretização de um modelo intemporal, uma espécie de ideia ou de mito, ao qual o homem concreto se aliene.
Humanismo que, não tendo uma visão crítico do homem concreto, pretende um será para ele; ele que, tragicamente, está sendo uma forma do quase não ser.
Pelo contrário, o humanismo que se impõe ao trabalho de comunicação entre técnicos e camponeses no processo de reforma agrária, se baseia na ciência, e não na “doxa”, e não no “eu gostaria que fosse” ou em gestos puramente humanitários.
É um humanismo que, pretendendo verdadeiramente a humanização dos homens, rejeita toda forma de manipulação, na medida em que esta contradiz sua libertação.
Humanismo, que vendo os homens no mundo, no tempo, “mergulhados” na realidade, só é verdadeiro enquanto se dá a ação transformadora das estruturas em que eles se encontram “coisificados”.
Humanismo que, recusando tanto o desespero quanto o otimismo ingênuo, é, por isto, esperançosamente crítico. E sua esperança crítica repousa numa crença também crítica: a crença em que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situação em que estão sendo um quase não ser e passar a ser um estar sendo em busca do ser mais.
Neste humanismo científico (que nem por isso deixa de ser amoroso) deve estar apoiada a ação comunicativa do agrônomo-educador.
Por tudo isso, uma vez mais, estamos obrigados a negar ao termo extensão e a seu derivado extensionismo as conotações do quefazer verdadeiramente educativo, que se encontram no conceito de comunicação.
pp 77–78
Este aprofundamento da tomada de consciência, que se faz através da conscientização, não é, e jamais poderia ser, um esforço de caráter intelectualista, nem tampouco individualista.
Não se chega à conscientização por uma via piscologista, idealista, mas enquanto travam entre si e o mundo relações de transformação, assim também somente aí pode a conscientização instaurar-se.
[…]
O educador, num processo de conscientização (ou não), como homem, tem o direito a suas opções. O que não tem é o direito de impô-las.
Se tenta fazê-lo estará prescrevendo suas opções aos demais; ao prescrevê-las, estará manipulando; ao manipular, estará “coisificando” e ao coisificar, estabelecerá uma relação de “domesticação” que pode, inclusive, ser disfarçada sob roupagens em tudo aparentemente inofensivas.
Então, falar de conscientização é uma farsa.
De qualquer maneira, porém, só é possível a este falso educador “domesticar”, na medida em que, em lugar do empenho crítico da desmistificação da realidade mitificada, a mitifique ainda mais.
pp 92–93 [parágrafos finais]
[…] o importante é que, quaisquer que sejam os pontos de apoio dos quais possa dispor o agrônomo-educador, saiba ele que estes são auxiliares que só se justificam se forem usados num quefazer libertador.
Quefazer que, tendo nele, um de seus sujeitos, lhe coloca uma exigência fundamental: que se pergunte a si mesmo se realmente crê no povo, nos homens simples, nos camponeses. Se realmente é capaz de comungar com eles e com eles “pronunciar” o mundo.
Se não for capaz de crer nos camponeses, de comungar com eles, será no seu trabalho, no melhor dos casos, um técnico frio. Provavelmente um tecnicista; ou mesmo um bom reformista. Nunca porém um educador de e para as transformações radicais.
FREIRE, Paulo. [1977] Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 12ª edição.