pavilhão de barcelona, uma miragem

originalmente postado em http://notasurbanas.blogsome.com/2010/05/17/pavilhao-de-barcelona-uma-miragem/

foto: design and technology student

A historiografia da arquitetura do século XX se construiu a partir de herois e de mitos.

Para propagar os mitos, foram fundamentais construtores de imagens e de reputações como os fotógrafos (Erza Stoller e Julius Shulman são tão indispensáveis quanto Corbusier ou Gropius para entender o período), as revistas (Case Study Houses, etc), os críticos/curadores/teóricos (Gidieon, Pevsner, Greenberg, etc). Mas talvez ainda mais importante tenham sido as histórias e os causos que se proliferaram nos corredores das escolas de arquitetura, quase como contos de fada que mestres contam a jovens aprendizes.

Poucas obras da arquitetura do século XX são tão míticas e sacralizadas quanto o Pavilhão alemão na Feira de Barcelona de 1929. Mies van der Rohe soube como ninguém moldar a própria imagem e construir um mito a partir dela, mais até do que Corbusier (enquanto este assumiu o aspecto caricatural desde o início, Mies soube manter-se meio blasé, apático, cuspindo discrição, desde a Bauhaus até Chicago). Sua obra de um modo geral (e particularmente o Pavilhão), descontextualizada e mitificada, é objeto de culto e invariavelmente integra os roteiros da procissão arquitetônica a que se submetem estudantes e arquitetos em busca dos templos sagrados da história da profissão.

Foto: saragoldsmith

Como se sabe, pouco depois da Exposição Universal de 1929, o Pavilhão foi demolido. Por iniciativa de diversos arquitetos e entidades, entre os quais se destaca a figura de Solà-Morales, a obra foi reconstruída nos anos 80. Na prática, trata-se de um modelo em escala 1:1. Não é possível reproduzir as relações de trabalho, não é possível reproduzir o canteiro de obras, o contexto, o entorno, a vida social, não é possível reproduzir os conflitos inerentes à obra de 1929 em 1986. Serve como exercício diletante, capricho aos arquitetos e estímulo a que aquele sítio integre o turismo arquitetônico. Tudo isto sabemos.

O que chama a atenção, porém, não é o fetichismo sobre a obra ou a criancice que levou à sua maquetização. Chama a atenção mesmo o desejo de esconder, ainda que após meio século, a todo custo, as dificuldades encontradas nos anos 20 para erigir aquele edifício. Por que tanto trabalho para continuar a legitimar o discurso? O Pavilhão original, para surpresa de muitos, não possuía laje plana, apresentava, ao contrário, um telhado de pequena inclinação. Os pilares de aço inoxidável eram ornamento e mais estavam lá mesmo para demonstrar uma função estrutural.

Dá vontade de provocar: se a intenção era erigir uma réplica, tal qual a original e no mesmo sítio, por que não replicar as condições de trabalho que dificultaram a construção do discurso? Situação similar ocorreu na reforma sofrida pela Casa Farnsworth nos anos 70, embora esta fosse, pelo menos, uma intervenção na obra original.

O caráter heroico da obra se encontra em grande medida nestes mitos: a ousadia da suposta cobertura sem telhado, a genialidade da suposta planta livre, a abstração espacial permitida pelos planos despreendidos de sua natureza tectônica de parede. Tudo tão fake quanto qualquer edifício residencial “neoclássico” paulistano.

Mais detalhes neste texto sobre clonagem arquitetônica de obras paradigmáticas do século XX (lido para uma disciplina de preservação e patrimônio):

[…] En cuanto a la fidelidad respecto al original, los procesos de reconstrucción ponen en evidencia la impossibilitad de la misma, puesto que se trata de obras que estaban destinadas en su mayor parte a ser construcciones temporales, realizadas con algunos materiales hoy en desuso, de las que carecemos de suficientes documentos y testimonios que permitan esa clonación, esa exactitude en la reconstrucción. Estas circunstancias han conducido a introducir numerosas modificaciones en las copias. […] Por ultimo, no menos importante ha sido la necessidad de escoger entre la reconstrucción fidedigna del proyecto según los planos o la fidelidad al edificio realizado.

Al respecto resulta especialmente ilustrativo el caso del Pabellón de Mies en Barcelona, puesto que del mismo no quedaba excesiva documentación, apenas unas hermosas fotos en blanco y negro tomadas durante la Exposición Internacional […] y unos sencillos diseños (nunca unos diseños ejecutivos) del arquitecto alemán realizados años después de la construcción. Como revela el arquitecto Giovanni Klaus König, este material no era suficiente y para la reconstrucción se hubo de consultar el arquitecto director de las obras, S. Ruegenberg, quien puso de manifiesto las diferencias entre el proyecto original y la obra finalmente realizada. Entre otras disimilitudes, resulta que los pilares no eran de acero cromado, como parecía en las fotos, los muros no estaban construidos por lastras de marmol de 10cm de espesor y el techo plano de cemento armado apoyado en exclusiva sobre los pilares de acero ni era plano, ni de cemento, ni se apoyaba en los muros. Es decir, todo aquello por lo que el Pabellón de Mies había sido exaltado en la crítica posterior como el conjunto de rasgos que caracterizaba a la arquitectura del Movimiento Moderno era, en realidad, un falso, una aparencia.

Según el mismo König, Mies van der Rohe se habría despreocupado de la construcción, al fin y al cabo de efímera vida y destinada a desaparecer, dirigiendo sua atención a controlar las fotografías que de él se iban a tomar, puesto que serían éstas el único documento que quedaría de la misma. Es significativo que, tras la extraordinaria fortuna crítica posterior de esta obra, probablemente insospechada para su autor, basada más en las imágenes que circularon de la misma que en el conocimiento directo de ella, Mies no hubiera querido contradecir a los críticos que ponían el Pabellón Alemán a la altura mítica del Partenón. Por tanto ¿a qué criterios debía atenerse la reconstrucción en 1986?, […]. La decisión de los arquitectos responsables del proyecto fue, sin enbargo, reconstruirlo de acuerdo con los diseños posteriores de Mies, dando lugar a un edificio que materialmente no había existido.

em MARTINEZ, Ascensión. La clonación arquitectónica. Madrid: Siruela, 2007, pp 114–116. [todos os grifos são meus]

***

Em tempo: é curioso que desde alguns estudos mais antigos sobre a arquitetura moderna brasileira se denuncia como “falsa” a Casa Modernista da Rua Santa Cruz, de 1927, já que ela esconderia com a alta platibanda seu telhado cerâmico e simularia estrutura/fachada livre com uso de alvenaria portante (v. por exemplo textos de Carlos Lemos sobre Warchavchik). Justo uma obra contemporânea ao Pavilhão Alemão e utilizando-se de recursos semelhantes tem suas artimanhas retóricas execradas há décadas — ainda que seja uma obra evidentemente atrelada a uma transição da composição eclética para algo próximo do protomoderno, não chegando nem perto do poder simbólico do Pabilhão. Talvez esta fixação da historiografia paulista em desprezar a experiência tenha a ver com a construção de um discurso de apoio à linha de arquitetos paulistas formada após os anos 60 — dita “brutalista” —, depois de chegada em São Paulo de cariocas como Tibau e Hélio Duarte, já que a tendência racionalista de Warchavchik não vingou. Fica a dúvida.

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