o pesquisador contingente

Passagem do livro Architecture Depends, de Jeremy Till, citado na postagem anterior, sobre a necessidade do pesquisador incorporar a contingência em seu trabalho:

Acadêmicos vivem com medo de serem pegos — “Mas como você pode levar isto a sério, ele/ela não leu XYZ” — então empregam variadas estratégias de gestão de risco. Uma delas é citar absolutamente tudo: isto não significa necessariamente que os textos a que o pesquisador se refere sejam ao menos lidos, muito menos tomados criticamente, mas dão-lhe cobertura. A segunda estratégia diz respeito a citar apenas os clássicos, os originais, os atuais líderes em seus respectivos campos. […] Qualquer assunto é então enquadrado pelos clássicos, e pode-se apenas propor pequenas alterações nos argumentos que orbitem este quadro. A terceira estratégia de gestão de risco envolve permanecer firmemente no interior dos limites da respectiva disciplina. Entretanto, todas estas estratégias estão sujeitas a falhar: sempre há um outro livro que ainda não foi lido, uma outra ideia que ainda não foi assimilada. Então se a pesquisa é uma combinação de diligência (gestão de risco) e sorte, também é aceitável bem receber a contribuição da sorte. […] Surgem portanto aqueles momentos em que se está lendo um livro e repentinamente torna-se necessário reconsiderar as hipóteses e ideias que vinham sendo desenvolvidas linearmente ao longo dos anos. Para mim, tais livros foram A produção do espaço de Henri Lefebvre, Modernidade e ambivalência de Zygmunt Bauman e Nunca fomos modernos de Bruno Latour, os quais me lançaram a novos territórios.

Meu argumento, grosso modo, é que a pesquisa é contingente e nada melhor que se assuma tal contingência como uma oportunidade para uma síntese produtiva ao invés de tomá-la como um obstáculo ao rigor acadêmico. O pesquisador contingente deliberadamente atravessa os limites de sua própria disciplina, sabendo que forasteiros frequentemente enxergam o óbvio que os íntimos daquela disciplina não percebem e reconhecendo também que mudanças de paradigma são normalmente iniciados no exterior e não no interior de um dado campo. O pesquisador contingente recebe cada novo livro com um senso de curiosidade, não com um senso de dever. O pesquisador contingente celebra os eventuais choques causados por novas ideias. Isto pois a pesquisa não é um procedimento tão linear como pode-se acreditar mas uma jornada por rizomas intelectuais. (A expressão é de Deleuze e Guattari; serei honesto aqui dizendo-lhes que eu nunca fiz mais que mergulhar no livro em que eles constroem tal argumento, Mil Platôs. O problema é: eu deveria adicioná-los à minha bibliografia como parte de minha estratégia de gestão de risco?). De todo modo — e este é o ponto vital do meu argumento — o pesquisador contingente não é um relativista. Não é o caso de qualquer texto ou ideia ser igualmente relevante ou ter o mesmo status. A jornada pelos rizomas não é uma sequência aleatória; ela possui uma direção determinada — guiada pelo problema da pesquisa — mas o destino não é em absoluto fixado. As contingências que surgem no meio do caminho não são portanto vistas como fragmentos concorrentes, mas como um campo de oportunidades a serem recolhidas em medida maior ou menor, e então filtradas de acordo com os objetivos do projeto. O pesquisador contingente deve ser suficientemente ágil, assim como suficientemente modesto, a fim de permitir que seus objetivos sejam transformados por outros eventos e ideias, mas ao mesmo tempo determinado o bastante para que não seja esmagado por eles.

A operação própria ao pesquisador contingente, como veremos, não é tão distante assim daquela do arquiteto contingente.

TILL, Jeremy. Architecture Depends. Cambridge: MIT Press, 2009; pp. 47–48.

Ainda não sei se é melhor traduzir “contingent researcher” como “pesquisador contingente” ou como “pesquisador contingenciado”.

O argumento de Till não é inédito, mas é interessante a forma como ele o coloca. Não se trata de um texto acadêmico e a ironia dele é por vezes irritante, assim como o pensamento que beira o pós-moderno irresponsável (ainda que ele tenha feito a devida reserva quanto ao pensamento relativista), mas ainda assim vale a pena registrar.

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