
Jeremy Till, arquiteto e professor britânico, tece algumas breves considerações sobre a Cité Frugès, projeto de Le Corbusier em Pessac, Bourdeaux (França) que já havia sido comentado aqui:
Em sua meticulosa documentação da moradia em Pessac, Philippe Boudon argumenta que a combinação do projeto original de Le Corbusier com as irrepreensíveis tendências “faça-você-mesmo” de parte de seus habitantes levaria a uma inevitável inundação daquele pelas urgências da vida cotidiana destes. “O fato relevante”, escreve Henri Lefebvre, o filósofo do cotidiano, em sua introdução ao livro de Boudon, “é que em Pessac Le Corbusier produziu um tipo de arquitetura que acomodava-se à conversão e a ornamentação escultórica. […] E o que adicionaram os moradores? Suas necessidades.”
Suas necessidades. Tão simples quanto isto. De fato, trata-se de fato tão simples que nós nos perguntamos por que um grande filósofo importar-se-ia com isto. É necessário, porém, afirmá-lo com toda a força filosófica a fim de reforçar que a arquitetura nunca pode controlar totalmente as ações de seus usuários. Na arquitetura, e assim se pretende, as necessidades são persuadidas em funções e portanto sujeitas a um controle normalizador. Funções (matemáticas, científicas, lineares) são, no entanto, muito diferentes de necessidades (repletas que são de desejos, diferenças e demandas) e no fundo, está claro, em Pessac as necessidades dos moradores emergiram para solicitar a arquitetura. A distância entre funções e necessidades é apenas uma entre as muitas brechas que separam a arquitetura como ela pretende ser e a arquitetura como ela é.
[…]
Em um de seus primeiros livros, Della tranquilita dell’animo, o arquiteto e teórico renascentista Leon Battista Alberti recomenda àqueles que queiram relaxar em tempos de tensão ou ansiedade que busquem conforto no devaneio arquitetônico: “e às vezes acontecia de não apenas eu me acalmar quando da inquietação de meu espírito, mas de pensar nas coisas mais raras e memoráveis. Às vezes eu desenhava e construía edifícios belamente proporcionais em minha mente […] e a ocupava com tais construções até que eu caísse de sono.” Pessoas normais recorrem à contagem de ovelhas quando querem dormir. Arquitetos do Renascimento, à proporção da arquitetura. Tanto ovelhas (aos cosmopolitas) quanto belas arquiteturas situam-se naquela zona crepuscular entre o dia e a noite, entre realidade e sonho — e quando alguém desperta de manhã resta-lhe não mais do que uma memória quimérica, revelando a perfeição da forma como uma miragem nunca a ser alcançada.
TILL, Jeremy. “Counting Sheep” in Architecture Depends. Cambridge: MIT Press, 2009; pp. 41–44

E, em um trecho anterior do texto, Till, com o mesmo tom irônico de um ensaio que não se pretende acadêmico, pondera o que segue:
Em uma reveladora passagem presente em Quando as catedrais eram brancas, Le Corbusier encontra-se em uma estação ferroviária de Bourdeaux e faz anotações do que ele vê:
A estação é repugnante. Nem um funcionário na plataforma lotada. Um oficial com uma insígnia dourada não sabe dizer quando chegará o trem de Paris. No escritório da coordenação eles são evasivos, ninguém preciso. Descontentamento generalizado, imundície ofensiva, o piso é negro, danificado, as imensas janelas são escuras. Às 21h00 o expresso para na plataforma n.º 4 repleta de caixas com vegetais, peixes, frutas, chapéus, caixas vazias retornadas.
Esta breve passagem nos diz tudo o que precisamos saber sobre os medos de Le Corbusier com seu “outro.” Sujeira, multidões indisciplinadas, tempo perdido, respostas inexatas, construções danificadas, a falta de branco e a contaminação entre categorias (roupas com comida). Caos e transgressão em todo lado. Mas o que é realmente revelador é que Le Corbusier sutilmente nos indica o motivo de sua passagem pela estação de Bourdeaux. É como se em sua jornada da estação até o subúrbio Le Corbusier se livrasse das presenças incontingentes, chegando então purificado a Pessac. Lá os edifícios são puros, ordenados, limpos, progressistas — tudo o que a estação de Bourdeaux não é. Ele atingiu “o milagre do espaço inexprimível […] uma profundidade sem limites abrindo-se […] presenças contingentes colocadas em fuga.” Bem, ele o atingiu em sua mente. Uma vez que ele vire as costas, as coisas começam a desenredar.
TILL, Jeremy. “The ridding of contingency” in Architecture Depends. Cambridge: MIT Press, 2009; p. 37
O que é realmente interessante nesta passagem é a rápida associação feita entre “necessidade” e “função”: a tradução das necessidades das pessoas (fundamentalmente subjetivas, às vezes ininteligíveis à primeira vista, às vezes mesmo invisíveis sob um manto de preconceitos e obstáculos sociais, sujeitas que são à ação da ideologia dominante, muitas vezes complexas demais para serem mesmo “tabuladas” em um fluxograma qualquer) em “funções” (que são naturalmente precisas, bem delimitadas e claramente distinguíveis umas às outras) não é algo evidentemente natural, mas trata-se claramente de uma operação intelectual em que não inexiste a interferência de qualquer tipo de poder (seja pelo aspecto seletivo desta operação — por se tratar antes de tudo de um filtro —, seja pelo aspecto tecnicista a ela inerente). Till, no fundo, questiona o programa arquitetônico (mesmo após ter questionado, em outras passagens do livro, movimentos das neovanguardas associados à autonomia da forma).
Justo o programa, este elemento constituinte de processos de projeto tão naturalizado no discurso de qualquer arquiteto, tão presente no conjunto de valores da profissão, algo ensinado aos primeiranistas desde seus primeiros momentos na faculdade — e, cabe lembrar, algo fundamental para transformar em mercadoria o projeto e a obra. Embora Till não se preocupe em questionar as relações de produção próprias do objeto arquitetônico (onde certamente ele encontraria uma miríade de novas contradições), este breve questionamento do programa já é suficiente para tornar sua leitura interessante.
Mesmo arquitetos importantes no cenário contemporâneo nunca questionaram o programa. Ao contrário, o celebrado Koolhaas e seu OMA, por exemplo, tornaram-se célebres justamente por promover um discurso arquitetônico baseado em uma exploração excessiva de questões programáticas.
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Algumas questões para o futuro: em que medida certos processos ditos “participativos” (ou “participativistas”) de fato contribuíram para a superação desta dicotomia “necessidade” x “programa”? Muitos destes processos, ao contrário de sua pretensa bem-intencionada orientação, podem no fundo aprofundar a burocratização do programa — ou mesmo sua mercantilização, visto que “necessidades” de atores diferentes passem a ser negociadas não de forma política mas de forma econômica, atribuindo-se um peso a cada uma delas —, por meio de bem-intencionadas “tabulações” de desejos, anseios, etc (não parece ser o caso dos processos que tenho visto ocorrerem no Brasil contemporâneo, no entanto, cuja complexidade transcende em muito o contexto presente da citação anterior).
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As imagens presentes nesta postagem pertencem ao projeto de pesquisa La machine à habiter e não possuem qualquer relação com os textos citados.
Amei o texto…citações e comentários.
Bom pra pensar na difícil tarefa do arquiteto em conciliar questões relacionadas à função (tão objetiva) e à necessidade (que tem a ver com o desejo, originado no inconsciente). Vou continuar lendo e aprendendo. Boa sorte!!!!
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obrigado!
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