Em um dado momento do século XX, o conceito de “meio-ambiente” passou a frequentar de modos variados o imaginário das pessoas —seja pela sua presença cada vez mais constante na cultura de massas, seja pela forma como ele se integrou à agenda política e social —, tendo sido incorporado pelo vocabulário ideológico do capital como forma de se reinventar. Se o ‘meio-ambiente’ como categoria de análise do mundo e como plataforma de ação surgiu primeiro em movimentos contraculturais vários (e, numa outra medida, também no mundo acadêmico), ele foi logo adotado por organismos e empresas globais como elemento ideológico de autopreservação — “responsabilidade ambiental” tem sido o principal álibi do capital contra os ataques a ele dirigidos. O que é a atual ideia de sustentabilidade senão o instrumento usado pelo capitalismo para transformar a degradação em mercadoria (quantificável e negociável)?
Nos discursos arquitetônicos o advento do ‘ambiente’ como expressão de uma pauta política (em teoria) inovadora entra em contato (ora em choque, ora em complemento) com a ideia de “ambiente construído” que frequentava o vocabulário da época e que já gozava há algum tempo de um certo prestígio como designadora do campo intelectual específico da arquitetura enquanto disciplina.

Reinhold Martin, professor da Universidade de Columbia que já havia sido citado na postagem “‘pense diferente'”, tece os seguintes comentários sobre a construção em meados dos anos 70 da pauta do ambientalismo e dos discursos que fatalmente levariam à noção hoje tão falaciosa de sustentabilidade (e cuja falácia lá já se encontrava em estado germinal):
[…] No dia 1º de janeiro de 1970, o presidente dos EUA, Richard M. Nixon, sancionou a Lei da Política Ambiental Nacional (National Environmental Policy Act, NEPA), declarando que “os anos 70 devem absolutamente ser aqueles em que a América pague sua conta com o passado reivindicando a pureza de seu ar, de suas águas, e nosso ambiente de vida. É literalmente agora ou nunca.” Em 10 de fevereiro do mesmo ano Nixon delineou um programa antipoluição de 37 pontos, destacando que “na medida em que aprofundemos nossa compreensão de processos ecológicos complexos […] muito mais será possível.” Ao assinar o NEPA e ao assinar tais medidas antipoluentes Nixon, de modo implícito, invocou uma série de construções que eram simultaneamente buscadas por arquitetos e teóricos da arquitetura, entre outros. Fundamental entre tais construções estava um problema humano implícito, o habitante do “ambiente.” Para Nixon, assim como para muito do discurso ambiental e ecológico, este problema era um instrumento de integração a uma totalidade sociopolítica, ainda que com fins diversos. Mas o que espero aqui esclarecer é o nível com que o discurso arquitetônico também invocou este mesmo problema em uma tentativa de isolar a arquitetura como tal das forças sociotecnológicas e sociopolíticas em operação no discurso sobre o “ambiente”
[…]
Entre os encaminhamentos presentes na lei sancionada por Nixon (que resultou na formação da Agência de Proteção Ambiental mais tarde naquele ano) encontrava-se um que autorizava e orientava todas as agências federais a “utilizarem uma abordagem sistemática, interdisciplinar, que garantirá o uso integrado das ciências sociais e naturais assim como das artes do projeto ambiental no planejamento e na tomada de decisões que podem apresentar impacto no ambiente do homem.” Neste sentido, as “artes do projeto ambiental” encontravam-se bem preparadas. Por exemplo, em 1972 foi lançado o sétimo volume da série Vision + Value, editada pelo artista e teórico visual (assim como professor no MIT) Gyorgy Kepes, intitulado Arts of the Environment[Artes do ambiente]. Este livro, assim como os que o precederam na série, tomou o requisito interdisciplinar de modo consideravelmente literal, não por responder diretamente a ele (Kepes não era nenhum Nixonita) mas ao contrário ao empregar o que a legislação chamara de uma “abordagem sistemática, interdisciplinar” integrando as “ciências sociais e naturais” com “as artes do projeto ambiental”, um quadro que até então era típico do discurso ecológico. De fato, Kepes via tanto a arte quanto a humanidade no limiar de uma segunda ordem de adaptação evolucionária, uma “evolução autoconsciente” regulada pela comunicação social, na qual as aspirações de “vida repleta de arte” das vanguardas do início do século XX (nas quais Kepes tinha suas raízes) foram substituídos por uma simbiose “homem e ambiente” regulada por um complexo conhecimento interdisciplinar.
[…]
A iniciativa ambiental de Nixon também apareceu brevemente na época na obra Design, Nature and Revolution: Toward a Critical Ecology[Projeto, natureza e revolução: por uma egologia crítica], de Tomás Maldonado, a qual era a tradução revisada para o inglês publicada em 1972 de seu livro La speranza progettuale de 1970. Maldonado, que havia dirigido a Escola Técnica Superior da Forma em Ulm [Technische Hochshcule für Gestaltug] entre 1954 e 1867 com uma ênfase em uma ciência racionalizada do projeto, destacava a origem do termo ecologia no grego oikos, que significava “casa” ou “lar” e que também integra a raiz da palavra economia, com ambos os termos traduzindo etimologicamente como o “estudo” e a “administração” do lar, respectivamente. Apesar de Maldonado ter notado o sentido etimológico de ecologia, ele não notou a conexão com a economia, preferindo ao invés disto adotar a abordagem sistemática de Ludwig von Bertalanffy por meio de uma análise do “sistema social” construído em torno de uma oposição entre sistemas abertos e fechados, derivada da escola pós-weberiana de sociologia americana formada nos anos 1950 ao redor de Talcott Parsons. Este quadro referencial leva Maldonado a ler as revoltas mal-sucedidas ocorridas no fim da década de 60 através da noção de “equilíbrio dinâmico” de um sistema, uma tendência que absorveria e neutralizaria o conflito. E então nós o vemos referindo-se sarcasticamente à campanha ambiental de Nixon como uma evidência de uma neutralização, um fechamento autoritário imposto a um sistema social, refletida na apropriação de protocolos ecológicos, ou o que Maldonado chama de “moda da ecologia.” Como é colocado por ele em uma das muitas e extensas notas de rodapé de seu livro: “De fato, de um dia para outro, como se eles estivessem respondendo a um Diktat, todos os principais veículos da imprensa americana — Time, Newsweek, Life, Fortune, Business Week e até mesmo Playboy — ficaram extremamente interessados no tema.” Consequentemente, para Maldonado, a transformação era simples: “O escândalo da sociedade está culminando no escândalo da natureza.” Mas o verdadeiro escândalo, para o qual Maldonado permanece insensível apesar de seu discernimento crítico, encontra-se na naturalização de “ambiente” como um sistema significativo. [o último grifo é meu]
MARTIN, Reinhold. “Language — Environment, c. 1973” in Utopia’s Ghost. Architecture and Postmodernism, again. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010; pp. 50–54
Não é preciso lembrar: em 1972 ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (mais conhecida como Conferência de Estocolmo), considerada pelos ambientalistas como um marco de início de um pensamento que mais tarde estaria associado ao que o capitalismo chama de desenvolvimento sustentável. Dois anos antes a ONU também passaria a celebrar anualmente o “Dia da Terra” em 22 de abril.

Martin segue explorando a problemática arquitetônica deste contexto de coisas (indo de Venturi a Einsenman, analisando as implicações discursivas que as diferentes formas de se apropriar das expressões sendo trabalhadas naquele momento propiciavam). Em particular, desenvolve uma curiosa e bem-articulada associação entre a busca de autonomia disciplinar realizada neste mesmo período pelas neovanguardas com uma espécie de “atitude protecionista” por parte da profissão, que estava prestes a sofrer profundas alterações com o vindouro processo de financeirização da mesma maneira que Estados tentavam — com as últimas medidas protecionistas levadas a cabo naquele momento e que logo se mostrariam ineficazes — evitar as transformações estruturais do capital, as quais, no entanto, eles iriam de todo modo logo assimilar.
Ao concluir o capítulo, destaca o seguinte:
Em 15 de agosto de 1971, Nixon promoveu nova iniciativa discursiva, a qual ele relatou em um informe televisionado sobre a política econômica: “Solicitei ao Secretário [da Fazenda, John B.] Connaly que suspendesse temporariamente a conversibilidade do dólar no ouro ou em outras reservas.” Tal medida, uma tentativa protecionista de estancar a inflação ascendente, tornou-se permanente em 1973. Aquele ano também assistiu à substancial elevação no fluxo de petrodólares especulativos como resultado do quádruplo aumento nos preços da energia durante o embargo de petróleo da OPEP, o qual efetivamente minou os esforços do estado para proteger sua moeda. […] Nas décadas posteriores [ao acordo de Bretton Woods, que vinculava o dólar ao padrão-ouro], através de ciclos inflacionários, o suprimento de dólares no mercado internacional chegou a exceder enormemente às reservas de ouro mantidas pelo Tesouro estadunidense. Em outras palavras, na linguagem da semiótica, o signo desvinculou-se de seu referente, ou o significante de seu significado.
[…]
Era neste contexto [o autor refere-se aqui ao início de um período histórico em que o capitalismo passa a se caracterizar por intensa financeirização] que Nixon também declarou, ao assinar a lei do Programa das Nações Unidas para o Ambiente de 1973 que “nós possuímos a Terra — seu ambiente e seus recursos para a confiança das futuras gerações,” uma assertiva que mais uma vez colaborava no obscurecimento da função pragmática de seu ambientalismo, em um momento em que sempre crescentes camadas de abstração lógico-matemática de uma economia global das materialidades — seja na forma de trabalho, terra, petróleo ou edifícios — de que o valor era originalmente extraído. […]
Idem, ibidem, pp. 64–65
