Ontem, em uma agradável manhã de sábado, partilhei de um rico encontro de memórias e paisagens. Tratava-se da terceira aula da oficina/curso conduzida por professores da FAUUSP e da FFLCH no distrito de Perus, reunindo em uma mesma instância disciplinas de graduação e pós-graduação envolvendo estudantes de variadas formações, bem como cursos livres e informais voltados a interessados não-universitários, moradores da região, entre outros.
Partilhei naquela manhã da deliciosa construção de paisagens fortemente marcadas por fragmentadas mas belas lembranças de quintais grandes, casas rodeadas por cercas e não por muros, ruas de terra batida e mesmo de graciosas quedas de bicicleta. Eram casas cheias de festas, rezas, mães, tias, parentas, avós, crianças. Um território marcadamente feminino, ao que parece — talvez o cotidiano suburbano a que eram submetidas as mulheres em uma sociedade tão machista, afinal, tenha sido belamente ressignificado. Num bairro de não mais que sete mil habitantes nos tempos daquelas memórias, distante cerca de 20 km do Centro de São Paulo, construímos juntos, entre outras, a imagem de uma mina d’água, de uma benzedeira, de corredores vários e mesmo de um cinema na rua improvisado com lençóis no Bar do Guido.
Mesmo sendo profundamente ateu — ou seja, desconfiado e apequenado —, emocionei-me com o sentido bonito produzido nas pessoas pela religiosidade que fluía e coloria o espaço construído à medida em que a memória partilhada por aqueles sujeitos viventes desenhava paisagens. Distâncias, ladeiras e morros mediam-se com procissões e terços. Padres holandeses e comunidades de base compunham este universo.
Soubemos ainda da silenciosa dor de artesãos espanhóis cujas filhas, estudantes da Unicamp, eram perseguidas pelos agentes da repressão. O papel das comunidades eclesiais de base revelara-se fundamental na mobilização de mentes e almas naqueles doídos e bonitos anos 1960/70 na distante e bela periferia de São Paulo. Tratava-se de um bairro castigado pela espessa fumaça da Fábrica de Cimento de Perus, palco de luta e afeto, resistência e carinho de seus operários-queixadas. Os viventes daquele lindo lugar, unidos e mobilizados, lutaram e conseguiram, entre outras coisas, a instalação de filtros nas chaminés da fábrica. “O pó de cimento esmaga a vida”, bradava o movimento, lutando e fazendo poesia.
Pouco a pouco se construía na manhã de ontem a semente do que no futuro deve ser a universidade livre e colaborativa com a qual todos aqueles viventes sonham.
Só posso, como estudante ignorante e distante que sou, agradecer a todos por ter participado desta emocionante partilha.
Belo texto…
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