liceu

Algumas palavras sobre a tragédia ocorrida na manhã desta terça-feira, 4 de fevereiro, na sede do Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.

Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo
Desenho de memória feito vários anos atrás, pouco depois de deixar o Liceu

1. minha relação com o lugar

Vivi o Liceu durante três anos, entre 2000 e 2002: conheci ali pessoas que influenciariam minhas escolhas e posturas futuras e foi por causa dele que passei de fato a conhecer a cidade em que morava. Todos os dias eu me deslocava da longínqua zona leste de São Paulo para a região da Luz: na prática, eu aprendia com este movimento o que era a cidade, as dificuldades cotidianas de seu povo, a vida de seu centro. Decidi ali, entre outras coisas, que queria estudar arquitetura e urbanismo.

Toda pessoa tem nas escolas que frequentou um marco para lembrar de seu passado e para construir sua subjetividade. Sinto, porém — e isto é compartilhado pelos meus colegas —, que o Liceu proporcionou a mim e a meus amigos mais do que um marco tradicionalmente associado a rituais de amadurecimento e passagem da adolescência à vida adulta. O Liceu nos forneceu um senso de comunidade e pertencimento que era e é cada vez mais raro. Até mesmo a união que se revelava entre os estudantes constituída em resistência aos métodos de ensino ultrapassados, autoritários e nada dialógicos utilizados por parte do corpo docente e incentivados pela instituição reforçava este caráter comunitário e coeso daquele grupo de alunos. Tratava-se de uma escola profundamente conservadora e com certo ranço antidemocrático do período ditatorial em que se constituíram seus cursos técnicos, apesar da origem centenária da instituição: ainda assim havia certa autonomia construída entre os estudantes, um certo espírito progressista que se expressava em atitudes que me parecem excessivamente precoces hoje — chegamos mesmo a organizar (aqueles garotos e aquelas garotas de 15, 16, 17 anos) uma greve quando o fechamento da escola parecia iminente por parte da mantenedora.

Liceu em 2008

Tenho críticas severas à maneira como o processo de ensino-aprendizagem se dava: em momentos vários a escola incentivava abertamente a competição entre alunos no lugar da colaboração (ainda que os alunos fizessem justamente o contrário); incentivava o culto a uma certa moral do trabalho que em última instância se revelava alienante e causadora de tensão entre os alunos; revelava-se conservadora  e excessivamente severa na maneira com que eram avaliados aqueles jovens em formação (o que até levava eventualmente a jubilamentos). Apesar de tudo isto, não posso negar a qualidade da formação que o lugar me propiciou, não posso negar a potencialidade que o lugar tinha em fazer com que pessoas de diferentes perfis se conhecessem e aprendessem a conviver, não posso ignorar a dedicação de um corpo docente que nutria pela escola os mesmos sentimentos que nutrimos hoje. Não a teria trocado por qualquer outra, enfim.

É difícil expressar o que o lugar efetivamente significou para nós. Sou crítico a ele, de um lado, mas nutro um carinho especial por ele, de outro. Reafirmo: não foi simplesmente “o colégio” para nós, mas um compromisso, um espaço de formação integral.

2. o centro cultural

O Liceu era formado por três entidades: a Escola Técnica, o Centro Cultural e a LAO Indústria. Esta última, autossuficiente, funcionava como mantenedora das outras duas. As sucessivas crises enfrentadas pelo país no período áureo do neoliberalismo tupiniquim levaram à inevitável queda de receita por parte da indústria: esta, por sua vez, viu-se em alguns momentos tentada a reduzir as atividades educacionais e culturais do Liceu ao mínimo possível (visto que seu estatuto as torna obrigatórias para que ele exista). A sede da indústria estava localizada na Lapa e, além dela, havia ainda instalações em Osasco. A Escola e o Centro Cultural, porém, mantinham a localização que o Liceu consolidara no início do século XX, na rua da Cantareira, em terreno cedido pelo poder público. Ali haviam se instalado as oficinas que marcaram o imaginário que parte considerável da população construiu em torno da instituição: o espaço foi responsável pela formação de parte da força de trabalho que alimentara a construção do Ecletismo paulista, pela produção de mobília art nouveau, etc. O espaço e o ensino reagiram às mudanças ocorridas na indústria e na construção paulista ao longo de um século, transformando-se nos anos 1970 em uma escola técnica baseada no modelo proposto pelo regime militar.

Nos anos 1980 — certamente influenciados pela moda dos centros culturais recém-inaugurada com o fenômeno Pompidou — sugeriu-se a constituição de um Centro Cultural no Liceu que abrigasse um conjunto de estatuária clássico recém-descoberto na Pinacoteca do Estado e que teria pertencido ao Liceu para uso em aulas de modelagem e escultura. Tratavam-se de réplicas de peças constituintes do cânone artístico ocidental: estavam lá o Moisés, a Pietá, o Davi de Michelângelo (que a escola se orgulhava em dizer — de forma um tanto quanto mitificadora — que se tratava da única réplica em tamanho natural na América Latina), um Davi de Verrochio, imagens clássicas como o Discóbolo, bem como o Laocoonte similar ao original anterior à restauração, agonizando com os braços abertos.

Foram estes, entre outros, os personagens que sofreram com o incêndio da madrugada do dia 4 de fevereiro.

O Centro Cultural do Liceu funcionou relativamente bem ao longo dos anos 80 e 90, promovendo alguns bons e disputados cursos livres de artes e ofícios. Sua atração principal, porém, já parecia datada e questionável: intitulada de “Espetáculo Multivisão — Arte e humanismo”, era constituída de gravações em áudio, efeitos luminotécnicos e de projeção de diapositivos a respeito da exposição permanente das réplicas que compunham o acervo. Se ela parecia inovadora nos anos 80, agora ela já se revelava problemática e reduzia o espaço expositivo a um evento pirotécnico com discurso único, linear e excessivamente narrativo.

Apesar disto, adorávamos o espetáculo. Adorávamos também aquele espaço, apesar de certo ar sóbrio e da expografia: adorávamos o jeitão de galpão industrial, adorávamos o porão e suas paredes e arcos de tijolos.

Infelizmente, o contato que tínhamos com ele era pequeno e pouco incentivado pela escola. Passamos nele por apenas algumas poucas experiências que nos marcaram: montamos lá o típico teatro de colégio, montamos uma exposição de trabalhos de nossos cursos técnicos, etc. Fiquei felicíssimo, aliás, de ser convidado a participar da avaliação dos trabalhos dos formandos no curso técnico no ano passado e de poder passar alguns agradáveis momentos no espaço do Centro Cultural.

Ainda assim, as lembranças que construímos do Liceu estão muito mais ancoradas nos demais espaços que propriamente no Centro Cultural: sinto até mesmo algum afastamento do lugar.

A administração do Centro, na minha época de estudante e nos anos posteriores, para piorar, foi também lentamente reduzindo suas ações até torná-lo quase invisível. A gestão do acervo parecia amadora, para dizer o mínimo: o espaço não era climatizado adequadamente para que pudesse receber aquelas peças em gesso centenárias, propiciando a formação de um ambiente quente e abafado, com ventilação ruim e manutenção inadequada. É preciso destacar o mérito das gestões recentes que, ao que parece, se esforçavam em promover um processo de restauro e requalificação das instalações da escola. O descaso com o acervo e com o espaço, porém, já vinha de anos.

3. nossa relação com os objetos

Talvez pelo afastamento que tínhamos do Centro Cultural durante a época de escola, talvez pela sensação de “tragédia anunciada” que se desenhava desde então, talvez pelo ceticismo com que me relaciono com a temática do patrimônio cultural, assisti à reação ao incêndio evitando qualquer atitude mais precipitada: sobretudo, precisamos evitar à tentação de encontrar culpados. A tristeza em saber que o espaço que é marco de minhas lembranças foi destruído é inevitável, mas é preciso agora olhar a coisa toda por outra perspectiva.

Em primeiro lugar, é preciso celebrar toda a mobilização que está se constituindo entre ex-alunos, ex-professores, alunos e professores para que o Centro seja reerguido adequadamente. Mas, para além desta necessária convocação de solidariedade à escola para a qual tanto devemos, precisamos também refletir sobre a relação que estabelecemos com os objetos que nos cercam e que nos fazem.

Ficamos inevitavelmente tristes em saber que uma parte do que somos foi destruída em minutos. Mas o trauma causado pelo evento raramente se revela em uma renovação na maneira com que olhamos para os artefatos com que nos relacionamos. E não pretendo com isto sugerir qualquer tipo de moralismo na nossa relação com a cultura material: trata-se apenas da necessidade de tomarmos consciência da maneira com que nos relacionamos com ela.

Para a maioria das pessoas que se sentiu abalada com a perda, não havia muito o que se fazer, é claro, dado o distanciamento. Para os administradores do Liceu, a gestão de um problema tão complexo como o de um acervo sem a devida (e caríssima) climatização certamente não era tarefa fácil ante as dificuldades financeiras do cotidiano. Mais uma vez, não pretendo encontrar culpados, apesar do problema estar visível há anos. Mas o momento é oportuno para discutir o papel que os objetos têm no nosso cotidiano.

Tratamos os objetos e as coisas de uma maneira contraditória: de um lado, promovemos a aurificação de alguns deles. Fazemos questão, por exemplo, de cultuar nossos carros ou de elevar certos gadgets a uma condição especial que nada tem de natural, mas que parece bastante espontânea. De outro lado, promovemos uma cultura do desperdício e do descarte que revela um desapego com aquilo que consumimos que, em última instância, sugere uma sociedade viciada. Ambos os casos são resultado de uma relação fetichizada com a cultura material: os objetos simplesmente parecem existir, não parecem ter sido produzidos nem parecem ser objeto da ação humana. Itens de consumo como iGadgets são dotados de vida própria (nada sabemos sobre a precarização do trabalho que os possibilita), já monumentos (e uso aqui o sentido original da palavra, como suporte de memória) — tal qual o Centro Cultural para nós, ex-alunos — são idealizados, destituídos de sua historicidade, são elevados a uma condição distante de sua materialidade. E, por conta disto, são esquecidos.

Os objetos que são dotados de certa aura — como o Centro Cultural para aqueles que nele viam um suporte de memórias — correm o risco, em momentos traumáticos como o atual, de se transformarem em um mito que nada tem a ver com as lembranças que se fazem dele. Seja ele reconstruído, seja ele transformado em um mito, o que se constituirá será um espaço que relação nenhuma estabelece com este conjunto de lembranças. Cabe perguntar: por que chegamos a tal ponto?

Existe um mito que prega que “o brasileiro não tem memória”. A frase é preconceituosa e conceitualmente equivocada (pois memória se constrói socialmente, não “se tem”), mas revela algo não sobre o conteúdo da assertiva, mas sobre quem a sentencia. Se é um chavão tão difundido, por que ele não é tão igualmente combatido por aqueles tantos que o pregam? A proposta discursiva por trás do mito é evidente: trata-se de desqualificar um outro “brasileiro” que não o próprio enunciador da sentença, culpabilizando-o por todas as mazelas advindas da suposta falta de memória. Também revela um entendimento da memória não como uma construção social que está envolta em conflito e em tensão, mas como um dado estático a que se deve recorrer de modo moralista.

O momento como o que vivemos é adequado para repensarmos nossa relação com os objetos (ao mesmo tempo efêmera e áulica, mitificadora e descartável), nossa relação com aquilo que nos circunda, nossa relação com a cidade, enfim. Trata-se de problema político (lidamos, afinal, com a pólis) dos mais sérios e virtuosos: precisamos discutir que responsabilidades queremos assumir com o que nos circunda e a quem isto interessa.

Não quero ver reerguida uma coisa da qual permaneçamos apartados e da qual lembremos apenas em momentos espetaculares. Quero, no entanto, ver reerguido o lugar que fez com que tanta gente se sentisse abalada com sua perda, um espaço que potencialmente continue a nos influenciar a sermos mais virtuosos.

4. políticas de patrimônio

Chegamos, enfim, ao problema essencial: é preciso politizar o patrimônio cultural institucionalizado, que se encontra hoje burocratizado e limitado a instrumentos ultrapassados, como o tombamento e os inventários técnicos distantes das pessoas.

Precisamos de uma plataforma pública que de fato incorpore a dimensão de conflito que caracteriza o patrimônio: uma plataforma que permita, enfim, que nossos referenciais de memória sejam devidamente celebrados na medida em que nossas responsabilidades e nossos direitos sobre eles sejam bem definidos. Que democratize os processos, envolva as pessoas e inverta o preconceito de que “as pessoas não se importam com o patrimônio”.

O que vi nas últimas horas foram centenas de pessoas que de fato se importam com uma coisa e estão dispostas a reconstrui-la, ainda que apartadas de sua preservação. Estamos, afinal, falando da nossa relação com a cidade e seus objetos. É esta relação que está obstruída, elitizada, burocratizada. Não está em questão a responsabilidade de uma entidade particular com seus bens, mas da forma como estamos construindo uma cidade que afasta as pessoas daquilo que elas consideram importante. Os movimentos contra a verticalização espalhados pela cidade (equivocados em seu alvo, mas legítimos em sua causa) têm diretamente a ver com isto.  A luta do pessoal que resistiu ao fim de um cinema de rua na Paulista tem a ver com isto (ainda que se trate de uma causa que teve excessiva exposição pública quando comparada com a luta na periferia por espaços culturais). Enfim: estamos tratando da forma como produzimos nossos gestos urbanos, como lidamos com nosso cotidiano na cidade. Estamos tratando de um conflito que se encontra neutralizado e precisa ser explicitado.

5. enfim

Não estou completamente seguro do que disse acima, confesso. Apesar da frieza com que tentei avaliar a situação, trata-se afinal de algo que constituiu anos fundamentais da minha vida, pelo que peço desculpas por eventual confusão na condução das ideias.

Apoio, porém, toda mobilização que se estabeleça ao redor do Liceu para celebrá-lo e ajudá-lo. Há ainda muito mais a fazer, porém.

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