Le Corbusier, como se sabe, impressionou-se com o poder de planificação da então jovem União Soviética e com o papel destinado à construção de novas cidades e de novas estruturas produtivas no processo de desenvolvimento do país.
O trecho que vai abaixo é extraído do texto “Atmosfera moscovita” (publicado como apêndice às Precisões sobre um estado presente da arquitetura e urbanismo). É significativo ao denunciar a concepção de Le Corbusier do trabalho. O franco-suíço bajulador de autoridades fascinou-se com a proposta de organização da vida cotidiana nas repúblicas soviéticas (na verdade, uma das propostas): o país em certo sentido traduzia-se em uma máquina produtiva ininterrupta, visto que a noção ocidental de “domingo” ou “sábado” como dias de descanso seria substituída por um calendário de trabalho diferente para cada cidadão. Era evidentemente uma proposta de vanguarda, afinada com o clima revolucionário.
Por trás da engenhosidade deste calendário nota-se, contudo, a não ruptura com um cotidiano de submissão do trabalhador ao trabalho, distante de qualquer proposta de um trabalho livre e pouco diferente do cotidiano proletário ocidental. A perspectiva que se colocava era a de entender o ser humano (o corpo, em última instância), como a máquina produtiva última, reduzindo-o às necessidades do ritmo de trabalho (agora adaptando o próprio ritmo de vida comunitário ao ritmo da máquina, acabando com a referência do “dia de descanso” geral). A própria noção de “descanso” é reduzida a uma função fisiológica, ignorando seu aspecto social. Toda a vida passava a ser tratada de modo funcionalista, maquinista.
Na medida em que se extinguia um dia em que todos os trabalhadores poderiam se encontrar, tal organização do trabalho levaria, em última instância, à própria desorganização da classe trabalhadora e a sua mais fácil sujeição à nova burocracia oficial.

Seguem as palavras do corvo:
A cidade verde.
Eis do que se trata:
Na União Soviética foi suprimido o domingo, introduziu-se o descanso do quinto dia.
Este descanso se dá por alternância: a cada dia do ano, um quinto da população da União Soviética descansa; amanhã é a vez do outro quinto e assim por diante. O trabalho não pára.
Comissões de médicos estabeleceram a curva de intensidade produtiva do trabalho. Esta curva se inflete fortemente no fim do quarto dia. Os economistas declararam: é inútil satisfazer-se com um rendimento medíocre durante dois dias. Concluiu-se: o ritmo da produção maquinista é de cinco dias; quatro de trabalho pleno, um de descanso.
Os médicos reconheceram, porém, que o homem se estafa, se expõe ao esgotamento nervoso. Recuperar-se durante as férias, anualmente? É insuficiente e será tarde demais, porque ele estará desgastado. Cuidar dele, de sua manutenção, revisar sua máquina, isto sim. A medicina moderna, aliás, orienta-se de acordo com um postulado novo: Não se cura homens doentes, faz-se homens sadios.
Férias anuais (quinze dias, um mês) vêm tarde demais. Os vícios enfraqueceram para sempre as máquinas, que se tornavam incuráveis: é usura, o mundo moderno se desgasta.
Decidiu-se então pela criação das Cidades Verdes, dedicadas ao descanso do quinto dia.
Para estabelecer suas características trabalharam comissões de médicos, mulheres e esportistas.
Um grande entusiasmo manifestou-se após a decisão de criar as cidades verdes.
A Cidade Verde de Moscou, situada a 30 quilômetros, entrou, sem demora, na fase de realização; seu território está delimitado e seu programa estabelecido. Um primeiro concurso de urbanismo e arquitetura acaba de contribuir para a discussão da urbanização das cidades verdes.
Eis o programa da Cidade Verde de Moscou:
O terreno mede 15 quilômetros de profundidade por 12 quilômetros de largura. As cotas de altitude variam entre 160 e 240 metros. O terreno está coberto por grandes florestas de pinheiros, entremeadas por campos e pastos; em alguns lugares correm ribeirões, que uma represa transformará em lago, no setor alocado ao esporte.
A Cidade Verde de Moscou será configurada como uma gigantesca hotelaria, na qual seus habitantes irão descansar no quinto dia, em alternância, de acordo com modalidades precisas. O problema arquitetônico consiste, portanto, em criar uma célula de repouso para um homem ou um casal, agrupar estas células numa edificação e repartir estas edificações no terreno obedecendo a uma disposição engenhosa.
[…]
Além do descanso do quinto dia, a Cidade Verde será habitada, à proporção de duas semanas ou um mês, pelos funcionários ou operários que nela passarão suas férias.
Le Corbusier, “Atmosfera moscovita” [1930] in Precisões sobre um estado presente da arquitetura e urbanismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, pp. 255–257. (outra versão do mesmo texto encontra-se aqui)
Curiosamente a semana de trabalho ininterrupta foi logo substituída por uma semana tradicional, como aponta este artigo de uma edição da revista Time de dezembro de 1930. A razão é, sem qualquer surpresa, de ordem produtiva: notou-se que as máquinas, não os homens, precisavam descansar um dia inteiro.
O que me faz lembrar que eu devo retomar a leitura de 1984, que está interrompida a uns 8 anos…
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justo antes da fau?
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é…
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