representações do centro de são paulo na folha: ingenuidade ou ideologia?

triângulo

Confesso que não tenho acompanhado os grandes jornais paulistanos. Procuro filtrar as informações que recebo sobre a cidade, sociedade e país por meio de veículos alternativos de mídia. Surpreendi-me, então, com a presença do crítico de arquitetura Fernando Serapião na Folha de S.Paulo, contribuindo com a temática arquitetônica e urbanística.

Eu não teria quaisquer razões para criticar Serapião, personagem importante no cenário editorial da arquitetura brasileira — eu nem teria credenciais para tanto. A representação que ele construiu do centro de São Paulo em texto recente, no entanto, suscita manifestações de qualquer cidadão interessado na cidade, pois ela sugere uma abordagem perigosa sobre a cidade. Os comentários que seguem, portanto, não são os de um estudante de arquitetura e urbanismo, mas os de um morador de São Paulo indignado com a forma como um grande veículo de mídia sugere que deva ser feita a “requalificação” do Centro.

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Fernando Serapião. “É preciso atrair diferentes faixas de renda para mudar o centro”. In Folha de S. Paulo, 15 de janeiro de 2013, http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1214946-analise-e-preciso-atrair-diferentes-faixas-de-renda-para-mudar-o-centro.shtml

A análise que Serapião publicou na edição de terça-feira, 15 de janeiro, na seção Cotidiano, é, no mínimo, ingênua — ou talvez cínica, caso não se trate de fato de ingenuidade. O título (“É preciso atrair diferentes faixas de renda para mudar o centro”) é ambíguo, mas seus poucos parágrafos são bastante claros em seu direcionamento ideológico e no recorte de classe que sugere.

De início, Serapião não erra em apontar o afastamento que o PT promoveu de seus históricos parceiros junto aos movimentos  populares de luta por moradia. Nem erra, também, em denunciar a péssima qualidade dos projetos habitacionais ligados ao Programa Minha Casa Minha Vida, o qual esteve mais preocupado em salvar as construtoras da falência que em produzir cidades com qualidade e dignidade. De fato, parece não mais tratar-se do partido que governou a cidade entre 1988 e 1992, invertendo prioridades e enfrentando as elites e a grande mídia. O contraponto que faz com a gestão Serra-Kassab, no entanto, possui algo de sofístico: tem-se a impressão pela leitura de seu texto que a política habitacional dos demotucanos tenha sido qualquer coisa mais humana ou dotada de maior poder de diálogo — algo que, em última instância, desafia os fatos, visto que tal política foi baseada em práticas de remoção forçada das populações pobres e do famigerado e excludente cheque-despejo, acompanhada de um mal administrado processo de aumento do preço da terra (e, portanto, de estímulo à periferização).

O que mais espanta no texto (e levando sempre em conta o fato de ser destinado ao público leigo), entretanto, é a forma como o autor representa a problemática ao redor da necessidade de dotar o centro de São Paulo de uma melhor política habitacional. Além de começar com uma inverdade — relacionada às iniciativas de reabilitação de imóveis ociosos em área central, as quais ele associa a Serra e Kassab, embora elas tenham origem na gestão de Marta Suplicy, tendo sido apenas entregues as unidades nas duas gestões seguintes as quais, então, interromperam tal política —, o texto leva o leitor a considerar a existência de empreendimentos de interesse social públicos como algo incompatível com a capacidade de ação da prefeitura (“elevadores caros”, “eterno subsídio da manutenção”, etc): trata-se, de fato, de um problema de inversão de prioridades, não de conformismo, como parece ser o tom adotado naqueles parágrafos.

O problema vem nas linhas finais: dá-se a entender que hoje o Centro seja ocupado apenas por camadas de baixa renda. Utilizando-se do já clássico argumento da diversidade de renda como estímulo à qualidade de vida urbana (o qual não está equivocado, embora seja sempre instrumentalizado como argumento pró-gentrificação), o texto parece tornar necessário ao desenvolvimento da cidade um absurdo estímulo público à vinda de moradores de maior renda à área central!

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Pior sofisma para o destino da cidade não pode haver. É no mínimo ingênuo considerar que a população que ora habita o Centro seja pobre: é praticamente impossível encontrar hoje uma quitinete à venda no Centro por menos de R$ 120.000 — e não é difícil encontrar quitinetes com menos de 30 m2 orbitando ao redor dos 200 mil. Apartamentos adequados a famílias maiores (com maior área e mais cômodos), portanto, são efetivamente incompatíveis com a capacidade de endividamento das famílias de mais baixa renda.

Fragmento de anúncio imobiliário virtual. Fonte: http://www.imovelweb.com.br/

Não sei onde o autor do texto mora nem o perfil de seus vizinhos, mas não me parece que seja um sujeito pobre que vá conseguir adquirir um imóvel com um preço por metro quadrado tão alto (algo entre 4 a 5 mil reais). Se olharmos para algumas regiões específicas do Centro, então, veremos que o recorte de classe é ainda mais excludente: aqueles que habitam o eixo da Av. São Luís podem até não ter a renda dos moradores das mansões dos Jardins ou dos edifícios mais caros de Higienópolis, mas trata-se de local longe de ser popular ou acessível ao povo. Moro no Centro há algum tempo e o frequento desde sempre e a sensação de gentrificação (lenta e contínua) é cotidiana: saem os botecos, chegam as padarias caras; saem os inferninhos, vêm os bares descolados. O recente interesse renovado das elites moderninhas pela arquitetura de grife da região também não é um processo de “valorização cultural” dos nossos arquitetos a ser celebrado, mas um fenômeno que reforça a guetificação rica.

Mesmo uma pesquisa informal em anúncios de imóveis revela o preço impeditivo dos imóveis à população de baixa renda. O texto da Folha parece tentar convencer o leitor, porém, de que, ao contrário dos fatos cotidianos, o Centro hoje parece ser um “gueto pobre” e precisaria de moradores de perfil de renda mais alto para “equilibrá-lo”. De fato, o que a Folha parece pretender é tornar a região central um lindo e elegante gueto rico, repleto de sua massa cheirosa e sem qualquer tipo de gente diferenciada e onde se explicitaria o apartheid social que caracteriza a sociedade paulistana. Não é possível deixar de chamar isto de ideologia.

Ao invés de incentivar políticas de facilitação de crédito, de subsídio parcial, ou de eventual locação social, para reduzir os impeditivos à presença de representantes dos 99% nestas áreas sujeitas à gentrificação, o jornal e o autor, ao contrário, consideram tais iniciativas impossíveis e preferem incentivar somente a presença dos privilegiados 1%.

Sutilmente a grande mídia começa a construir sua agenda, aproximando-se lentamente do prefeito-da-coalização, construindo representações de cidade que justifiquem a mobilização de dinheiro público para fins privados. A menção, no fim do texto, à revisão do Plano Diretor e do Zoneamento deixam isto ainda mais claro, sobretudo quando levamos em conta a tentativa desastrosa de Serra e Kassab forçarem uma revisão de tais leis que reduziria a importância das zonas especiais de interesse social e flexibiliaria as regras para agradar ao mercado imobiliário — sem falar no péssimo projeto de Plano de Habitação apresentado em 2012 por Kassab e sua equipe.

Há algo de assustadoramente errado quando ninguém repara no absurdo que é um especialista defender o estímulo, com verba pública, à presença de camadas de alta-renda em espaços já excludentes e com o potencial de se tornarem guetos ricos.

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