Buckminster Fuller é desses personagens tradicionalmente apresentados como a caricatura de si mesmos. Self-made man quintessencial, inventor excêntrico, projetista ao mesmo tempo ousado e pragmático, Fuller é usualmente tido como alguém “à frente de seu tempo” — ainda que, de fato, seja plenamente condizente com ele —, lembrado por hábitos pouco usuais e pelos objetos marcantes que criou. De certa forma, Fuller talvez seja uma espécie de Professor Pardal na arquitetura e no design do século XX, conforme a célebre metáfora de José de Souza Martins sobre Patópolis.
Entre seus hábitos excêntricos encontrava-se o de registrar exaustiva, sistemática e rigorosamente todos — absolutamente todos — os aspectos e momentos de sua vida — todos os dias, desde os seus 14 anos até sua morte.
O resultado desse enorme esforço de memorialização e arquivamento da vida não poderia receber outro título por parte de Fuller: o acervo é chamado Dymaxion Chronofile, aproveitando a marca que o próprio inventou para denominar vários de seus outros produtos (como o Dymaxion Car ou a Dymaxion House — ou até mesmo o Prêmio Dymaxion).
São 140.000 documentos, distribuídos em 700 volumes, estimados em meio quilômetro linear de arquivo e em cerca de 45 toneladas de papéis, cadernos, fitas de áudio, recortes de jornal e outros objetos. O acervo atualmente faz parte dos arquivos da Universidade de Stanford. A descrição do acervo está disponível aqui.

Uma empreitada como a de Fuller parecia certamente excêntrica no século XX — para não dizer um tanto quanto paranóica ou mesmo neurótica, o que só colabora para posicionar sua figura (sempre supostamente “à frente” de seu tempo) cada vez mais firmemente embrenhada com o século em que viveu. Contudo, se hoje tal iniciativa também parecesse exagerada se feita deliberadamente, trata-se de algo razoavelmente comum, ainda que involuntário: todos sabemos o quanto nossas vidas cotidianas são registradas e processadas por computadores localizados em algum canto da Califórnia. Fuller, talvez, estivesse sendo precavido e antecipando, no fundo, uma distopia em que algumas poucas empresas dominam todos os registros de memória de cada passo de nossas vidas.
O Chronofile de Fuller é simbólico de nossa relação patológica com a memória e de nossa eterna batalha contra o esquecimento e a perda. Alertas contra iniciativas como esta já haviam sido sugeridas no célebre conto de Borges sobre Funes — personagem amaldiçoado com a incapacidade de esquecer, eternamente condenado a um envelhecimento instantâneo, a um eterno presente, à incapacidade de construir abstrações. Funes estava permanentemente impossibilitado, por exemplo, de entender como dois animais distintos em tantas particularidades podiam ser igualmente chamados de “cachorro” já que suas diferenças seriam sempre inesquecíveis.
Curiosamente, porém, os involuntários registros que fazemos o tempo todo de nós mesmos publicando nossas localizações, opiniões e atividades no Twitter, no Facebook ou no Instagram são de tal forma dotados de uma aparente efemeridade, de um instantâneo esquecimento, que somos aparentemente protegidos da maldição de Funes. Somos mesmo?
Imagem destacada: Wikimedia Commons.