Em Pedagogia da esperança, Paulo Freire recorda ideias e episódios que lhe ocorreram ao longo de sua trajetória. Recorda-se, em certo momento, de uma interessante história sobre criatividade, liberdade, coerção e desestímulo:
[…] Claudius Ceccon, o notável cartunista brasileiro, residente, então, em Genebra, me contou o seguinte caso, ocorrido com Flávio, seu filho. Um dia tristonho e ferido, Flávio lhe disse que sua professora havia rasgado um desenho seu. Vivendo a liberdade que ele aprendia, em casa, cada vez mais a usar, experimentando-se num clima de respeito e afeto, em que sua curiosidade não era interditada, em que sua criatividade tinha condições de exprimir-se, ele não podia compreender o gesto, para ele, e não só para ele, ofensivo, de sua professora, rasgando um desenho seu. Era como se a professora tivesse rasgado um pedaço dele mesmo. No fundo, seu desenho era uma criação sua que merecia tanto respeito quanto um texto ou um poema que tivesse escrito. Ou uma bola de pano que tivesse feito ou um caminho, não importa com que material o tivesse construído. O fundamental é que seu desenho era obra sua, criação sua e a professora o rasgara.
Como qualquer pai ou mãe de opção democrática e coerente com sua opção, Claudius procurou a professora para conversar sobre o ocorrido.
A professora tinha a criança em alto apreço. Falou dela de forma elogiosa, salientando o seu talento e a sua capacidade de ser livre.
Feliz pela visita do pai de um de seus alunos a quem ela realmente admirava, ia e vinha quase saltitante, falando de suas atividades de classe.
Claudius ouvia e acompanhava suas narrativas esperando um oportuno momento para, com sua raiva já gasta, já amainada, falar a ela sobre o ocorrido. De repente, ela lhe mostra uma coleção de desenhos quase iguais de um gato preto. Um gato único, multiplicado, que sofrera apenas mudanças, de um ou outro, neste e naquele traço.
— Que tal? — pergunta a professora sem esperar resposta; pergunta apenas para exclamar. — Foram os alunos que fizeram — diz ela. — Trouxe para eles um modelo de gato para que copiassem.
— Eu acho que teria sido melhor se eles tivessem tido na sala um gato vivo, andando, correndo, pulando — disse Claudius. — As crianças desenhariam o gato como o entendessem, como o percebessem. As crianças reinventariam o gato de verdade. Ficariam livres para fazer o gato que lhes aprouvesse. Seriam livres para criar, para inventar e reinventar.
— Não! Não! — gritou, quase, a professora. — Talvez isso dê certo com seu filho, talvez. Não estou certa, mas talvez com ele isso dê certo; com ele — repetia — que é vivo, inteligente, criador, livre. Mas, e os outros? Lembro-me de mim, de quando era criança — continuou a professora. — Me apavoravam as situações em que me sentia demandada a escolher, a decidir, a criar. Foi por isso que, há poucos dias, tornei (amenizou a ação de rasgar com a de tomar) um desenho de Flávio. Ele desenhou um gato que não podia existir. Um gato multicor. Não poderia aceitar o desenho dele. Seria prejudicial não só a ele mas sobretudo aos outros.
E essa, parecia, era a forma como a escola toda funcionava e não só aquela educadora que tremia de medo só em ouvir falar de liberdade, de criação, de aventura, de risco. Para ela o mundo não devia mudar e, tal qual na estória do porquinho, jamais deveríamos sair dos trilhos que bitolam nossa passagem pelo mundo. Marchar nos trilhos já postos para nós, eis o nosso fado, a nossa sina. Fazer os caminhos caminhando, recriar o mundo, transformá-lo, jamais!
in FREIRE, Paulo. [1992] Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
Construir caminhos caminhando, hoje, parece ser experiência cada vez menos estimulante, dada a quantidade de instrumentos de autovigilância e autocontrole a que nos submetemos.