o iPhone no museu

Em meados do ano passado, num desses sítios de compra e venda de material usado na internet, cruzei com a oferta de um iPhone de primeira geração por um preço bastante atraente. Trata-se da edição do aparelho considerada a “original”, de 2007, apelidada pelos seus entusiastas de “iPhone 2G” — já que apenas o modelo lançado no ano seguinte viria a contar com tecnologia de dados 3G.

Adquiri o aparelho sem qualquer pretensão de iniciar uma coleção de objetos semelhantes: achei, contudo, que valeria a pena guardar essa peça de design tão cultuada e fetichizada por tanta gente. Um dia — quem sabe? — posso doá-la a algum museu brasileiro interessado no assunto, que certamente saberá preservá-la melhor do que eu.

Que o iPhone seja um dos produtos mais mitificados no mundo do consumo de massas não é novidade para ninguém: todos os anos um perturbador e fascinante culto de fanáticos e entusiastas passa meses discutindo e especulando sobre como serão os novos modelos, apresentados normalmente em setembro pela Apple. Para além do dia-a-dia do mundo do consumo, contudo, trata-se também de um aparelho bastante cultuado no mundo do design: alguns dos principais museus de design do mundo contam com exemplares do iPhone em seus acervos — e, em particular, com exemplares desse modelo de primeira geração.

musealizando telefones

Tomemos como exemplo o Cooper Hewitt (Museu de Design do Instituto Smithsoniano em Nova Iorque) que possui em seu acervo um conjunto de 27 exemplares de produtos da Apple, entre os quais o iPhone 2G. Entre os produtos musealizados, encontram-se um exemplar do primeiro iMac, de 1998 e de seu irmão portátil, o iBook. Também estão lá alguns exemplares de iPods (entre os quais, sem qualquer surpresa, o primeiro modelo, de 2001, ainda com seu notório carrossel mecânico). Esta lá também o primeiro modelo de iPad, de 2010, bem como a curiosa edição comemorativa do Macintosh lançada no aniversário de 20 anos de Apple. Ainda entre as “primeiras edições” encontra-se o clássico primeiro modelo de Macintosh, de 1984 — produto sempre apontado como responsável por uma revolução no campo do “desktop publishing”.

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Fica evidente nesse pequeno recorte do acervo o destaque dado às “edições originais”, bem como aos produtos normalmente celebrados nas narrativas mais comuns (e em geral triunfantes) sobre a trajetórias de empresas como a Apple. Em geral não se encontram lá os produtos mais cotidianos ou medíocres produzidos pela empresa ao longo de suas mais de três décadas de existência. Fracassos ou falhas eventualmente aparecem — como é o caso do Newton, pioneiro tablet produzido ainda nos anos 1990 que se revelara um fracasso de vendas e de usabilidade — mas elas apenas colaboram com as narrativas triunfalistas e laudatórias, mais do que estabelecendo um contraponto a elas.

Entre os telefones celulares musealizados, além do iPhone, podem ser encontrados ainda produtos como o StarTac, produzido pela Motorolla em 1996 e o Simon, da IBM — pioneiro telefone com tela de toque, de 1993. Parece haver um único aparelho com sistema Android, um Galaxy Note 8, de 2017. Trata-se também, inclusive, do único exemplar de qualquer produto comercializado pela Samsung em todo o acervo — e ele só está no acervo por ter feito parte de uma exposição de objetos utilizados por uma personalidade específica, realizada em 2018.

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no futuro parecerá que todos só usavam iPhones e Macs

A pesquisa por “Android” sequer resulta em qualquer resultado no sistema de busca do acervo do Cooper Hewitt, o que revela se não um deslize de catalogação talvez mesmo um desinteresse em reconhecer os designs cotidianos com os quais bilhões de pessoas lidam em todo mundo. Será que um museu de design não deveria justamente colecionar objetos com os quais a maior parte das pessoas lida no seu dia a dia?

Pode-se sempre argumentar, é claro, que o iPhone original, de 2007, é simbólico de uma revolução nos costumes cotidianos de uma parcela significativa do mundo: hoje quase todo mundo carrega para todos os lados esses telefones ditos “espertos”, dedicando inclusive várias horas do dia para eles. No catálogo de uma das exposições em que o iPhone fora exibido (Tools: Extending Our Reach), por exemplo, há uma curiosa página demonstrando todas as ferramentas que um aparelho como o iPhone teria substituído atualmente.

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Dessa forma, sua presença em acervos de história do design seria incontestável pelo seu papel simbólico, signo máximo dessa revolução cotidiana pela qual teríamos passado na última década — tanto quanto seria igualmente incontestável a relevância do já citado primeiro modelo de Macintosh, pelo papel supostamente exercido na transformação do dia-a-dia da própria prática do design gráfico e na própria difusão de interfaces gráficas em computadores pessoais.

Contudo, museus de história já superaram há décadas a priorização de grandes marcos e dessas supostas grandes rupturas, incorporando elementos das práticas cotidianas e enfrentando o fenômeno da mudança menos pela via das grandes narrativas heróicas e triunfalistas e mais pela maneira como processos sociais vão sendo lentamente transformados.

Nesse sentido, onde estariam inventariados, preservados e expostos os Motos Gs, os Samgungs Js, os computadores portáteis da Dell comercializados com Microsoft Windows, os tijolões da Nokia com joguinho de cobrinha? No futuro pensarão que usávamos apenas iPhones e Macs?

Não se trata, é claro, de uma defesa romântica e idealizada do cotidiano. Mas acervos com foco em história do design como o do Cooper Hewitt fatalmente explicitam uma abordagem que permanece — apesar de todos os esforços críticos do último meio século — privilegiadora de obras e autores, mais do que de processos e práticas.


Como curiosidade, há que se registrar que o software relativo ao clássico joguinho de cobrinhas dos velhos celulares da Nokia faz parte do acervo do MoMA.

3 comentários em “o iPhone no museu”

  1. Interessante. Isso me faz pensar que a história é só mesmo um grande resumo e apenas do que sobrou. Mas essa questão dos aparelhos eletrônicos modernos, imagino eu, posso estar errado, que cada grande fabricante tenha seu próprio museu, que eventualmente será transferido para um museu dos grandes.

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    1. acho difícil: no dia a dia das grandes empresas o mais provável é que modelos sejam simplesmente descartados — tenho realmente dúvidas de que todas tenham uma política consistente de arquivamento ou musealização de suas peças

      quanto à história: ela não é bem o que sobrou, mas um conjunto de representações orientadas pela força das diferentes agências que agem na sua construção

      veja esse excerto: https://arquiteturaemnotas.com/2014/09/23/jacques-ranciere-historia-e-ficcao/

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