O quadrinho abaixo é bastante feliz em sintetizar as mudanças sofridas no capitalismo por conta da financeirização e nas estratégias das esquerdas dos anos 70 para cá:

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Notícia recente do Portal IG indica que a empresa chinesa Foxconn já esteja operando na cidade paulista de Jundiaí. Celebrou-se tanto o fato de passarmos a produzir em terras tupiniquins os adorados produtos da Apple que se chegou mesmo a batizar a patética alça de acesso à fábrica de Rua Steve Jobs.
A Foxconn, parceira chinesa da Apple no negócio bilionário de produzir os celebrados iPhones, iPods e iPads, tem sido recentemente alvo de denúncias de organizações ligadas aos direitos humanos pelas péssimas condições de trabalho a que são submetidos seus operários. A empresa emprega mais de 400 mil trabalhadores apenas em uma de suas plantas. O caso mais grave envolveu o suicídio de 18 trabalhadores chineses que não suportaram o efetivo “campo de concentração” em que viviam. Como se sabe, na China a organização sindical é praticamente neutralizada pela repressão do Estado, de modo a inviabilizar qualquer protesto por parte dos trabalhadores em prol de melhores condições e salários. A nova elite econômica chinesa, no entanto, tem comemorado a fabricação de produtos Apple no país e considera críticas como as feitas à Foxconn como uma espécie de atitude antinacionalista.
A situação chegou a tal absurdo que a Foxconn passou a exigir dos operários que assinassem contratos em que eles se comprometiam a permanecerem vivos!

Os casos de suicídio, no entanto, são — não sei se felizmente ou infelizmente, dada a violência das condições de exploração deste novo proletariado — residuais, pois a maior parte dos operários chineses da Foxconn sentem-se efetivamente parceiros da empresa e são bastante orgulhosos de produzirem os amados iGadgets. Consideram-se privilegiados em fabricarem os produtos, numa atitude que em outros contextos da mesma China já foi comparada a de nossos candangos durante a construção da Brasília que lhes foi negada.
A filial brasileira da Foxconn já nasce problemática: os funcionários são revistados diariamente e se submetem a detectores de metal mesmo quando usam o sanitário. A empresa interfere mesmo em seu cotidiano doméstico: conversas com familiares e amigos sobre o trabalho que fazem são proibidas e podem levar a demissões por justa-causa, visto que os operários assinam contratos de confidencialidade.

Trata-se de estratégia já conhecida do capitalismo contemporâneo: incorpora-se à cultura empresarial o vocabulário antes associado à contracultura e às esquerdas libertárias em que se reúnem palavras como colaboração, participação, autonomia a fim de tratar o proletário como um suposto parceiro no processo produtivo, tratando de reduzir ou mesmo de eliminar completamente todas as proteções sociais a que ele conquistara no período anterior do capitalismo de bem-estar social. Na China, a novilíngua socialista-nacionalista-capitalista atrapalha ainda mais tudo: os jovens trabalhadores chineses nas empresas transnacionais seriam no fundo valentes soldados trabalhando pelo triunfo do país e de seu esquizofrênico socialismo.
O discurso da participação em ambientes empresariais é fascinante pelo seu poder quimérico em produzir uma ideologia geradora de exploração violenta de mais-valia, quase de modo consciente por parte do trabalhador.
Parceiros, afinal, não precisam de seguro-desemprego, férias remuneradas, horas-extras reguladas, aposentadoria, etc. Parceiros têm a autonomia de dar o sangue pela empresa, dedicando-se totalmente a ela e recusando relações de trabalho antiquadas e apostando na precariedade da colaboração. Assusta-me o quanto este discurso está introjetado mesmo entre colegas formados ou formandos quando discutem o tal mercado de trabalho de arquitetura.
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Segundo o pesquisador Pedro Arantes, comentando a obra de Sérgio Ferro:
A figuração desse novo canteiro [refere-se aqui à proposta de relações de produção da arquitetura baseada no trabalho livre, como formulado por Sérgio Ferro ao longo de sua obra teórica desde os anos 60] descrito por Sérgio [Ferro] precisa, entretanto, ser vista hoje diante das transformações pelas quais passou o capitalismo nos últimos trinta anos, com o aparecimento de novas formas de produção. Se, por um lado, a produção da arquitetura segundo as novas relações de trabalho sugeridas por Ferro tem como pressuposto transformações sociais radicais, por outro, possui semelhanças inesperadas com as formas pós-fordistas de organização técnica do trabalho. A proximidade não é casual, pois a crítica de Sérgio estrutura-se sobre o modelo de organização “fordista”, onde o trabalho é realizado de forma mecânica e idiotizada. Na produção flexível, em sua forma industrial (o “toyotismo”), ao contrário, espera-se a colaboração inteligente de cada operário, que ele conheça toda a linha de produção e participe na descoberta de novas técnicas de produção. O trabalho não sofre mais as mesmas cisões, pois valoriza-se o team work, a cooperação e a identidade com a empresa. O vocabulário da criatividade, autonomia, iniciativa e participação substitui o das palavras carregadas de opressão do fordismo e embaralhou os termos da luta política e sindical.
Esta nova organização estabelecida pelo capital, por sua vez, não tem nada de emancipatória, ao contrário, representa um aumento vertiginoso da dominação. Não se trata de uma autonomia conquistada, mas imposta, juntamente com a diminuição dos direitos e proteções sociais. A diferença é que a dominação tornou-se menos explícita, não sendo mais identificável na figura do capataz e nas repressões físicas — houve uma espécie de interiorização em cada indivíduo das normas e coerções da própria lógica do capital.
[…] É como se a crítica de esquerda ao fordismo acabasse sendo adotada pelo capital nas suas formas de organização técnica do trabalho, só que com o sentido inverso: a seu favor. Essa é a tese, por exemplo, de Jean-Pierre Le Gof, segundo a qual a ruptura antiautoritária de maio de 68 deu origem às formas contemporâneas de management.
ARANTES, Pedro. Arquitetura Nova. Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 120–124.
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No livro Infoproletários há uma série de análises desta conjuntura. Seguem algumas passagens do artigo de Ricardo Antunes que encerra o volume.
Sabemos que, a partir dos anos 1970, o capital implementou um processo de reestruturação em escala global, visando tanto à recuperação do seu padrão de acumulação, quanto procurando repor a hegemonia que vinha perdendo, no interior do espaço produtivo, desde as explosões do final da década de 1960 onde, particularmente na Europa ocidental, se desencadeou um monumental ciclo de greves e lutas sociais.
Foi nesse contexto que o capital, em escala global, veio redesenhando novas e velhas modalidades de trabalho — o trabalho precário — com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa.
Proliferaram, a partir de então, as distintas formas de “empresa enxuta”, “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário” etc., dentre os mais diversos modos alternativos de trabalho precarizado. E os capitais utilizaram-se de expressões que, de certo modo, estiveram presentes nas lutas sociais dos anos 1960, como controle operário e participação social, para dar-lhes outras configurações, muito distintas, de modo a incorporar elementos do discurso proletário, porém, sob clara concepção burguesa. O exemplo das cooperativas talvez seja o mais eloquente, uma vez que, em sua origem, elas eram reais instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores contra a precarização do trabalho e do desemprego.
O que vem fazendo os capitais em escala global: criando cooperativas falsas, como forma de precarizar ainda mais os direitos do trabalho, quando não sua destruição.
Segue o trecho mais interessante e revelador:
[…] Através da telemática e das tecnologias de informação (além do avanço das formas de flexibilização e precarização do trabalho que estamos indicando), com o avanço da horizontalização do capital produtivo, o trabalho produtivo doméstico vem presenciando formas de expansão em várias partes do mundo. Desse modo, o trabalho produtivo a domicílio mescla-se com o trabalho reprodutivo doméstico, aumentando as formas de exploração do contingente feminino.
[…]
Esses contingentes [refere-se a trabalhadores de setores como do telemarketing e call centers, fast food, motoboys, etc] são partes constitutivas das forças sociais do trabalho que Ursula Huws sugestivamente denominou como cibertariado — o novo proletariado da era da cibernética que vivencia um trabalho (quase) virtual em um mundo (muito) real, para lembrar o sugestivo título de seu livro que discorre sobre as configurações do trabalho na era digital, informática e da telemática —, novos trabalhadores e trabalhadoras que oscilam entre a enorme heterogeneidade (de gênero, etnia, geração, espaço, nacionalidade, qualificação, etc) de sua forma de ser e a impulsão tendencial para uma forte homogeneização que resulta da condição de precariedade dos distintos trabalhos.
ANTUNES, Ricardo. “Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho?” in ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy. Infoproletários. Degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009, pp. 233–237.